FLÁVIO ILHA, O GLOBO
Os quatro réus no processo que tinham sido presos no dia seguinte à tragédia são os dois sócios da boate Kiss, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o produtor do grupo, Luciano Bonilha Leão. A ordem de soltura foi remetida hoje mesmo à Superintendência dos Serviços Penitenciários do estado. Segundo o relator do processo, Manuel José Martinez Lucas, passados quatro meses da tragédia, não é mais possível admitir a garantia da ordem pública como “fundamento geral e irrestrito” para manter a prisão.
“O magistrado teceu longas considerações sobre o episódio da boate Kiss e suas dramáticas consequências, extravasando uma emoção consentânea com a comoção geral da comunidade, o que era compreensível e natural naquele momento, pois o juiz também é homem e tem humanas reações, felizmente para seus jurisdicionados. Como adiantei, toda essa argumentação tinha razão de ser no momento em que lançada a decisão, mas, a meu juízo, já não se sustenta”, escreveu o relator do recurso da defesa.
Com o veredicto do TJ, o presidente da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, Adherbal Alves Ferreira, lamentou a decisão e disse que os parentes ficaram “impotentes” diante dela. O Ministério Público também protestou contra a decisão do tribunal.
Os réus respondem por homicídio com dolo eventual, qualificado por asfixia, incêndio e motivo torpe. A 1ª Vara Criminal de Santa Maria já havia negado a solicitação de revogação da prisão, mas a defesa do vocalista recorreu ao Tribunal de Justiça, que atendeu ao pedido.
— Recebemos (a notícia) com tristeza e surpresa. Nosso receio é que a decisão acarrete morosidade no processo e também risco de fuga. Temo que a Justiça não seja feita — afirmou o promotor Joel Dutra, um dos responsáveis pelo caso.
Pai da estudante Jennifer Ferreira, morta no incêndio, aos 22 anos, Adherbal Ferreira relatou o sentimento da família após o anúncio da liberdade do réus.
— Estamos acabados. A Justiça acaba de nos provar que a culpa é dos pais. Eles nos tiraram o tapete e nos deram uma pancada na cabeça. Estou me sentindo cansado, triste, com raiva. Temo que essas pessoas fujam. E tenho a sensação de que este caso não vai dar em nada. É uma vergonha para o nosso país — protestou Ferreira.
Dois sobreviventes têm alta
Mais de 50 pais e parentes de vítimas que assistiram à sessão da 1ª Câmara Criminal do TJ protestaram depois da decisão. Eles chegaram a interromper o trânsito em frente ao Tribunal, mas depois se dispersaram.
Pai do estudante de Educação Física Vinícius Rosado, o jovem de 26 anos que entrou na boate diversas vezes para socorrer as pessoas e morreu intoxicado antes de chegar ao hospital, Ogier Rosado disse que a decisão do tribunal revolta os pais, mas que ainda acredita na condenação dos réus.
— Como pai, estou decepcionado. Até mesmo pela própria segurança (dos réus), eles deveriam ter ficado na cadeia. Disseram que foi uma decisão técnica, e preciso confiar na Justiça, acreditar que os promotores vão tomar medidas para mudar a situação — disse.
A defesa do músico havia ingressado com dois recursos: um pedia a libertação dos réus, e outro solicitava a inépcia da Vara Criminal de Santa Maria para julgar o processo, devido ao foro privilegiado do prefeito de Santa Maria, Cézar Schirmer. O recurso pedindo a transferência de competência para o TJ foi indeferido. Os passaportes dos quatros réus que ganharam a liberdade foram retidos pela Justiça.
O advogado de Elissandro Spohr, Jader Marques, disse que foi agredido com um tapa no rosto depois da decisão e registrou ocorrência no TJ. O advogado afirmou temer pela integridade física do seu cliente após ele ter sido colocado em liberdade.
“Sempre tive esse temor. E, depois de eu ter sido agredido, passo a ter esse temor também em relação a mim”, observou em nota distribuída à imprensa. Conforme o advogado, Spohr nunca tomou qualquer atitude que sinalizasse uma possível intenção de fugir do país. “Meu cliente comparecerá a todos os atos do processo e está à disposição do juiz para tudo o que for necessário. Enfim ele vai ter a oportunidade de falar”, informou na nota.
Advogado de Luciano Bonilha Leão, produtor do grupo Gurizada Fandangueira, Gilberto Weber disse compreender a revolta dos pais das vítimas:
— Não deve ser fácil aceitar que os réus deixem a prisão porque houve vinculação desse ato com um castigo. Mas a liberdade é um direito processual, e o castigo não pode anteceder o julgamento.
Dois sobreviventes do incêndio na boate Kiss, Cristina Peiter, de 23 anos, e Marcos Belinazzo Tomazetti, de 25, receberam alta nesta quarta-feira. A jovem estava internada no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre, desde o dia 27 de janeiro. Estudante de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Santa Maria, Cristina teve 22% do corpo queimados e ficou 25 dias na CTI, sendo 18 em coma induzido. Outros dois feridos seguem internados.
Entenda a tragédia
Na madrugada do dia 27 de janeiro, centenas de jovens participavam de uma festa na boate Kiss, no Centro de Santa Maria. O fogo começou durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira. Por volta de 2h30m, um dos integrantes do grupo utilizou um sinalizador luminoso, cujas fagulhas atingiram a espuma de isolamento acústico da casa noturna, provocando o incêndio.
As vítimas buscaram rotas de fuga, no entanto, segundo relato de sobreviventes, um grupo de seguranças bloqueou a única saída da boate para evitar que os clientes saíssem sem pagar. Sem conseguir sair do estabelecimento mais de 200 jovens morreram e outros 100 ficaram feridos. A maioria dos mortos foi vítima de intoxicação pela fumaça. Os bombeiros encontraram dezenas de corpos empilhados nos banheiros, onde muitos ainda tentaram se proteger, e em frente à porta da boate. O incêndio, que teve repercussão internacional, é considerado o segundo maior da História do país e a maior tragédia do Rio Grande do Sul.
Com 262 mil habitantes, Santa Maria é uma cidade universitária que fica na região central do estado. A festa, chamada de “Agromerados“, reunia estudantes da Universidade Federal de Santa Maria (UFMS). A maior parte deles tinha entre 16 e 20 anos. De acordo com o Corpo de Bombeiros, o plano de prevenção contra incêndios da boate Kiss estava vencido desde agosto de 2012.
Localizada na Rua Andradas, a boate Kiss costumava sediar festas e shows para o público universitário da região. A casa noturna é distribuída em três ambientes — além da área principal, onde ficava o palco, tinha uma pista de dança e uma área vip. Segundo informações do site da casa noturna, os ingressos custavam R$ 15.