Na madrugada de domingo (12/5), a presidente da Argentina se acomodou para assistir a um documentário sobre seu marido Néstor Kirchner, morto em 2010. Ela descreveu o ritual de solidão numa sequência de tuítes: “Sentei na mesma poltrona em que me sentava com ele… Ainda não tinha tido vontade de ver. Por quê? Me provoca demasiada dor, quase insuportável.”
A obra do cineasta Adrián Caetano está no Youtube. “Me comoveu” — continuou. “Era ele… Voltei a sentir que me olhava. Depois de vê-lo em sua plenitude política, humana e em seu papel histórico, me senti pequena, muito pequena”.
Aos 60 anos, Cristina sugere o desejo de ser percebida como a “Evita” de Kirchner. Há 28 meses só veste preto. Em público, evoca o finado marido meia dúzia de vezes ao dia. Vive cercada por retratos dele e do mito feminino da política argentina, María Eva, mulher do presidente Juan Perón, morta aos 33 anos de idade. Cristina cresceu recitando na escola trechos da autobiografia de Evita. E continua emulando-a na emoção estudada dos discursos, na esgrima da personalidade forte e no esmero ao compor a imagem com joias, unhas em branco cintilante e maquiagem pesada — “duas horas diárias”, confessou a biógrafas.
Preserva uma fração do legado estético da “mãe dos pobres”, como reza a mistificação peronista, no qual se destacam originais dos estilistas Paula Naletof, Jacques Fath, Christian Dior e Pierre Balmain. Há três semanas, em Buenos Aires, surpreendeu Dilma Rousseff ao mostrar-lhe um vestido vermelho com bolas brancas, mantido em redoma, sem lavar, para conservar o Arpège de Jeanne Lanvin, o predileto de Evita.
Semelhanças com governo menem
Foi um intervalo no clima tenso que permeou e abreviou visita de Dilma à Argentina, relatam diplomatas. Elas não conseguiram vencer o impasse nas negociações. A relação segue abalada pelas perdas comerciais bilionárias do Brasil (US$ 3 bilhões ao ano em produtos industrializados) e pelo êxodo do mercado argentino. Ao menos 150 empresas brasileiras saíram do país nos últimos cinco anos, informa a Associação dos Exportadores. Neste ano, partiram Petrobras, Vale, JBS, Marfrig e Duratex.
O governo Cristina Kirchner perdeu o controle da economia. Entrou em rota de colisão com o Judiciário. Ampliou a insegurança com expropriações de empresas. E enroscou-se numa espiral de escândalos de corrupção na família presidencial.
Neste sábado, os Kirchner completaram uma década no poder — e, também, um ciclo de rápido enriquecimento. Nesse período, conseguiram aumentar 27 vezes o valor (em dólares) do patrimônio pessoal. Em 2003, Néstor somou US$ 648,9 mil em bens familiares. No ano passado, Cristina declarou US$ 17,6 milhões.
O casal chegou de maneira inusitada à Casa Rosada, em 25 de maio de 2003. Néstor saiu do primeiro turno eleitoral com só 22% dos votos, mas foi proclamado vitorioso porque o rival, ex-presidente Carlos Menem, renunciou à disputa.
Por ironia da História, essa modesta margem de apoio alcançada por Néstor nas urnas, dez anos atrás, assemelha-se ao atual índice de aprovação de Cristina — 29% na pesquisa da M&Fit de abril. A imagem era outra há 18 meses. Cristina se reelegeu com mais votos (54%) do que os antecessores. Agora, 59% a rejeitam.
O efeito corrosivo dos escândalos conduz os críticos a um passeio pela memória recente do peronismo, sugerindo semelhanças entre o projeto dos Kirchner e o do ex-presidente Menem.
Como Menem (1989-1999), os Kirchner são acusados de corrupção. Como ele, Néstor tentou e Cristina continua tentando controlar o Judiciário. Menem, agora senador governista, quis mudar a Constituição para disputar um terceiro mandato. A presidente nega a intenção, mas os aliados prenunciam uma “Cristina eterna”, como diz a deputada peronista Diana Conti.
No exorcismo das teorias sobre sua “menemização”, Cristina tem evocado o lado “progressista” da era Kirchner. Quando Néstor assumiu, os argentinos estavam traumatizados pela derrota nas Malvinas (1982), pela inflação de 3.070% (1989) e por uma debacle financeira (2001) que levara à posse de cinco presidentes em 12 dias. Ele recompôs o caixa na moratória da dívida externa. E viu-se beneficiário da súbita valorização dos produtos agrícolas no mercado mundial.
Cheque em branco contra os “inimigos”
Resultado: o Produto Interno Bruto que caíra 10,9% em 2002 decolou para um aumento de 9% em 2004. A inflação despencou de 25,9% para 4,4%. Com programas de renda mínima, o nível de pobreza recuou de 50% para 20%.
Em paralelo, deu impulso a reformas sociais, liberou o casamento gay, e contribuiu para a abertura de processos sobre violações dos direitos humanos na recente ditadura (1976-1983).
— Foi a melhor etapa de nossa democracia — acha Luis Majul, autor de “O Dono”, livro de 517 páginas sobre corrupção no círculo kirchnerista.
Ilusões desvanecidas, sobrou a percepção de “um menemismo com direitos humanos”, na ironia do humorista Diego Capusotto. Cristina entendeu que os 54% de votos da reeleição representavam “um cheque em branco”, diz Franco Lindner, autor de uma biografia da presidente. E avançou contra os “inimigos”, destacando a imprensa. Num impulso, demitiu com humilhação a secretária palaciana Miriam Quiroga. Expôs o ciúme da mulher com quem dividira o marido nos seus últimos 11 anos de vida:
— É vox populi que eu era a amante de Kirchner — admitiu Miriam à revista Noticias.
A vingança não tardou. Dias atrás, Miriam descreveu na televisão o mecanismo de corrupção em contratos públicos, que viabilizou até uma rota de transporte de dinheiro e barras de ouro entre palácios, ministérios e cofres de empresários amigos, como o empreiteiro Lázaro Báez, suposto sócio de Néstor, e o chefão de cassinos Cristóbal López, beneficiário de generosos patrocínios estatais em finanças e petróleo. López fez uma oferta pelos ativos argentinos da Petrobras. A estatal recusou.
São ícones da era Kirchner e, também, da crise que imobiliza Cristina Kirchner — uma presidente em eterno luto, cujo humor oscila permanentemente entre a euforia e a melancolia. Informações de O Globo.