Denúncias de enriquecimento ilícito marcam aniversário do kirchnerismo


Cristina mostra a Dilma Rousseff um vestido de Evita Perón durante visita da brasileira à Casa Rosada no mês passado: presidente argentina tenta emular a mítica primeira-dama dos discursos à maneira de se vestir
Foto: 25-4-2013/Presidência da Argentina

Cristina mostra a Dilma Rousseff um vestido de Evita Perón durante visita da  brasileira à Casa Rosada no mês passado: presidente argentina tenta emular a  mítica primeira-dama dos discursos à maneira de se vestir 25-4-2013/Presidência da Argentina

  Chovia muito, contou Cristina Kirchner. A ventania  espalhando farelo de gelo desde o Parque de Glaciares indicava uma típica  madrugada de outono em El Calafate, na província de Santa Cruz, dois mil  quilômetros ao sul de Buenos Aires.

Na madrugada de domingo (12/5), a presidente da Argentina se acomodou para  assistir a um documentário sobre seu marido Néstor Kirchner, morto em 2010. Ela  descreveu o ritual de solidão numa sequência de tuítes: “Sentei na mesma  poltrona em que me sentava com ele… Ainda não tinha tido vontade de ver. Por  quê? Me provoca demasiada dor, quase insuportável.”

A obra do cineasta Adrián Caetano está no Youtube. “Me comoveu” — continuou.  “Era ele… Voltei a sentir que me olhava. Depois de vê-lo em sua plenitude  política, humana e em seu papel histórico, me senti pequena, muito pequena”.

Aos 60 anos, Cristina sugere o desejo de ser percebida como a “Evita” de  Kirchner. Há 28 meses só veste preto. Em público, evoca o finado marido meia  dúzia de vezes ao dia. Vive cercada por retratos dele e do mito feminino da  política argentina, María Eva, mulher do presidente Juan Perón, morta aos 33  anos de idade. Cristina cresceu recitando na escola trechos da autobiografia de  Evita. E continua emulando-a na emoção estudada dos discursos, na esgrima da  personalidade forte e no esmero ao compor a imagem com joias, unhas em branco  cintilante e maquiagem pesada — “duas horas diárias”, confessou a biógrafas.

Preserva uma fração do legado estético da “mãe dos pobres”, como reza a  mistificação peronista, no qual se destacam originais dos estilistas Paula  Naletof, Jacques Fath, Christian Dior e Pierre Balmain. Há três semanas, em  Buenos Aires, surpreendeu Dilma Rousseff ao mostrar-lhe um vestido vermelho com  bolas brancas, mantido em redoma, sem lavar, para conservar o Arpège de Jeanne  Lanvin, o predileto de Evita.

Semelhanças com governo menem

Foi um intervalo no clima tenso que permeou e abreviou visita de Dilma à  Argentina, relatam diplomatas. Elas não conseguiram vencer o impasse nas  negociações. A relação segue abalada pelas perdas comerciais bilionárias do  Brasil (US$ 3 bilhões ao ano em produtos industrializados) e pelo êxodo do  mercado argentino. Ao menos 150 empresas brasileiras saíram do país nos últimos  cinco anos, informa a Associação dos Exportadores. Neste ano, partiram  Petrobras, Vale, JBS, Marfrig e Duratex.

O governo Cristina Kirchner perdeu o controle da economia. Entrou em rota de  colisão com o Judiciário. Ampliou a insegurança com expropriações de empresas. E  enroscou-se numa espiral de escândalos de corrupção na família presidencial.

Neste sábado, os Kirchner completaram uma década no poder — e, também, um  ciclo de rápido enriquecimento. Nesse período, conseguiram aumentar 27 vezes o  valor (em dólares) do patrimônio pessoal. Em 2003, Néstor somou US$ 648,9 mil em  bens familiares. No ano passado, Cristina declarou US$ 17,6 milhões.

O casal chegou de maneira inusitada à Casa Rosada, em 25 de maio de 2003.  Néstor saiu do primeiro turno eleitoral com só 22% dos votos, mas foi proclamado  vitorioso porque o rival, ex-presidente Carlos Menem, renunciou à disputa.

Por ironia da História, essa modesta margem de apoio alcançada por Néstor nas  urnas, dez anos atrás, assemelha-se ao atual índice de aprovação de Cristina —  29% na pesquisa da M&Fit de abril. A imagem era outra há 18 meses. Cristina  se reelegeu com mais votos (54%) do que os antecessores. Agora, 59% a  rejeitam.

O efeito corrosivo dos escândalos conduz os críticos a um passeio pela  memória recente do peronismo, sugerindo semelhanças entre o projeto dos Kirchner  e o do ex-presidente Menem.

Como Menem (1989-1999), os Kirchner são acusados de corrupção. Como ele,  Néstor tentou e Cristina continua tentando controlar o Judiciário. Menem, agora  senador governista, quis mudar a Constituição para disputar um terceiro mandato.  A presidente nega a intenção, mas os aliados prenunciam uma “Cristina eterna”,  como diz a deputada peronista Diana Conti.

No exorcismo das teorias sobre sua “menemização”, Cristina tem evocado o lado  “progressista” da era Kirchner. Quando Néstor assumiu, os argentinos estavam  traumatizados pela derrota nas Malvinas (1982), pela inflação de 3.070% (1989) e  por uma debacle financeira (2001) que levara à posse de cinco presidentes em 12  dias. Ele recompôs o caixa na moratória da dívida externa. E viu-se beneficiário  da súbita valorização dos produtos agrícolas no mercado mundial.

Cheque em branco contra os “inimigos”

Resultado: o Produto Interno Bruto que caíra 10,9% em 2002 decolou para um  aumento de 9% em 2004. A inflação despencou de 25,9% para 4,4%. Com programas de  renda mínima, o nível de pobreza recuou de 50% para 20%.

Em paralelo, deu impulso a reformas sociais, liberou o casamento gay, e  contribuiu para a abertura de processos sobre violações dos direitos humanos na  recente ditadura (1976-1983).

— Foi a melhor etapa de nossa democracia — acha Luis Majul, autor de “O  Dono”, livro de 517 páginas sobre corrupção no círculo kirchnerista.

Ilusões desvanecidas, sobrou a percepção de “um menemismo com direitos  humanos”, na ironia do humorista Diego Capusotto. Cristina entendeu que os 54%  de votos da reeleição representavam “um cheque em branco”, diz Franco Lindner,  autor de uma biografia da presidente. E avançou contra os “inimigos”, destacando  a imprensa. Num impulso, demitiu com humilhação a secretária palaciana Miriam  Quiroga. Expôs o ciúme da mulher com quem dividira o marido nos seus últimos 11  anos de vida:

— É vox populi que eu era a amante de Kirchner — admitiu Miriam à revista  Noticias.

A vingança não tardou. Dias atrás, Miriam descreveu na televisão o mecanismo  de corrupção em contratos públicos, que viabilizou até uma rota de transporte de  dinheiro e barras de ouro entre palácios, ministérios e cofres de empresários  amigos, como o empreiteiro Lázaro Báez, suposto sócio de Néstor, e o chefão de  cassinos Cristóbal López, beneficiário de generosos patrocínios estatais em  finanças e petróleo. López fez uma oferta pelos ativos argentinos da Petrobras.  A estatal recusou.

São ícones da era Kirchner e, também, da crise que imobiliza Cristina  Kirchner — uma presidente em eterno luto, cujo humor oscila permanentemente  entre a euforia e a melancolia. Informações de O Globo.

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