Pela Quadra 12, chegam os veículos carregados para descarte. Foi por ali que entraram, somente em 2016, último ano de pleno funcionamento do local, 830.055 toneladas de resíduos domiciliares — o equivalente a 3,3 mil vezes a capacidade total de carga do maior avião do mundo.
O montante faz parte, segundo estimativa do Serviço de Limpeza Urbana (SLU), dos cerca de 40 milhões de toneladas de lixo aterradas naquela área desde a década de 1960, quando a região da Estrutural começou a ser utilizada para esse fim.
O ponto mais alto da montanha de resíduos tem 55 metros de altura — pouco menos que o mirante da Torre de TV, com 75 metros.
Transformada em lixão sem que o solo fosse impermeabilizado, a área representa, portanto, sérios riscos ao meio ambiente e à saúde dos catadores e de toda a população do DF.
Esta reportagem especial reúne medidas adotadas pelo governo de Brasília para a desativação do local em 20 de janeiro e detalha a nova rota do lixo na capital do País, com o Aterro Sanitário de Brasília, inaugurado em janeiro de 2017, como ponto central do processo.
Da invasão à cidade — o surgimento da 25ª região administrativa do DF
O lixão de Brasília fica no Setor Complementar de Indústria e Abastecimento (SCIA) — Estrutural, cuja população urbana foi estimada em 39.015 habitantes pela Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad) de 2015, da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan).
A cidade se origina de uma invasão, com pessoas atraídas para o depósito de lixo em busca de meios de sobrevivência. Ao longo das décadas, foram diversas as tentativas de retirada das ocupações ilegais, todas sem sucesso.
Em janeiro de 2004, tornou-se a sede urbana do SCIA, criado em 1989 e transformado na 25ª região administrativa do DF pela Lei Distrital nº 3.315, de 27 de janeiro de 2004.
História de luta, resistência e conquista
Uma casa no Conjunto 14 da Quadra 3 guarda parte da história da região. Um passado de “luta, resistência e conquista”, repete a coordenadora do Ponto de Memória da Estrutural, Maria Abadia Teixeira, de 54 anos, ao apontar para dois grandes banners na parede, com as três palavras escritas.
![Maria Abadia, coordenadora do Ponto de Memória da Estrutural, gesticula em frente a um cartaz com diversas fotografias antigas da Estrutural. No cartaz, há também o título: Luta](http://www.agenciabrasilia.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2018/01/maria-abadia-memoria-estrutural-tony-winston-agencia-brasilia.jpg)
Abadia explica que a relação com a cidade começou após visitas à irmã dela. Com o tempo, também fixou residência e, atualmente, mora na Estrutural há 20 anos.
“Foram grandes enfrentamentos pra gente ficar; depois, para os que ficaram terem direito de os filhos estudarem. As crianças sofriam muito, porque, pela pista que vem do Jóquei para cá e dá no lixão, passavam em média 200 caminhões por dia, com lixo, com entulho, com tudo”, recorda, ao destacar o alto fluxo dos veículos, a quantidade de poeira e lixo e os adoecimentos.
No Ponto de Memória, diversas imagens mostram os momentos de empenho da comunidade em busca de melhorias.
No passado, uma das paredes da entrada era estampada de ponta a ponta por exemplares do Diário Oficial do DF de 10 de janeiro de 2008, que trouxe, em mais de 50 páginas, a relação dos lotes e respectivos ocupantes no Projeto Urbanístico de Regularização da Zona Especial de Interesse Social Vila Estrutural.
![alt=](https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2018/01/ponto-memoria-estrutural-tony-winston-agencia-brasilia.jpg)
Daí a importância do impresso oficial. “Tem barraco que queima, barraco que não tem uma chave para guardar, e as pessoas vão perdendo. Com o Diário Oficial, não estava só guardado nas nossas mãos, estava guardado oficialmente.”
Depois de ressaltar avanços, como a construção da primeira escola da região, ela emenda, ao apontar para imagens que representam as vitórias: “As conquistas dizem tudo de nós, porque, sem luta, nada disso nós teríamos”.
O Ponto de Memória existe desde 2011 e é mantido por integrantes do Movimento de Educação e Cultura, composto por moradores locais e outras pessoas interessadas, como professores e estudantes.
Segundo dados do SLU, de 2009 a 2017, foram registrados pelo menos 47 acidentes. Na lista estão desde queimadura e queda até casos mais graves, como os que envolvem tombamento de carreta, perda da ponta dos dedos, braço decepado, atropelamento e morte.
![Catadores em meio lixo que está sendo despejado por um caminhão](http://www.agenciabrasilia.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2018/01/caminhao-despeja-lixao-estrutural-gabriel-jabur-agencia-brasilia-683x1024.jpg)
Quanto aos danos ao meio ambiente, o lançamento de resíduos sólidos urbanos é uma atividade potencialmente poluidora, conforme a Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, a Política Nacional do Meio Ambiente. Se feito inadequadamente, esse descarte é considerado crime pela Lei de Crimes Ambientais, de 1998.
Além disso, a Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, proíbe a colocação de lixo em locais a céu aberto e define como adequada ambientalmente a disposição dos rejeitos em aterros.
“O fechamento tem um impacto positivo na recuperação do meio ambiente. O lixão fica ao lado do Parque Nacional de Brasília, uma unidade de conservação que abriga a Bacia Santa Maria-Torto, o segundo maior reservatório do DF”, ressalta o secretário do Meio Ambiente, Igor Tokarski.
Listado pela Associação Internacional de Resíduos Sólidos como um dos 50 maiores lixões do mundo, o da Estrutural ocupa, de acordo com análise do Serviço de Limpeza Urbana do DF, a vice-liderança do ranking, atrás apenas do de Jacarta, na Indonésia.
Engenheiro civil com pós-doutorado em resíduos sólidos na Universidade Politécnica da Catalunha, na Espanha, o professor da Universidade de Brasília (UnB) Pedro Murrieta envolveu-se nos debates em torno da elaboração da Lei nº 12.305.
“A situação ainda é muito grave na questão de resíduos sólidos no Brasil. Brasília teve uma melhoria considerável em 2017 porque inaugurou o aterro sanitário, mas até então era, talvez, a pior situação das capitais do País. Um descalabro”, analisa Murrieta, que pesquisa temas como disposição de resíduos urbanos e contaminação do meio ambiente.
“O metano, quando se mistura com o oxigênio em uma determinada porcentagem, pode explodir, pode queimar.” A inalação do gás — que é incolor e sem cheiro — pode causar parada cardíaca, asfixia e até danos no sistema nervoso central.
![Obras para conter vazamento de gás na Escola Classe 1 da Estrutural](http://www.agenciabrasilia.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2018/01/obra-gas-escola-classe1-estrutural-tony-winston-agencia-brasilia-1024x683.jpg)
Ao exemplificar o perigo da substância, Murrieta resgata o caso da Escola Classe 1 da Estrutural, reaberta em 2017 depois de interditada por cinco anos, após o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil constatarem alta concentração de gás metano no local.
A unidade foi construída em 2004, em madeirite, sobre um lixão desativado. Dois anos depois, recebeu estrutura de alvenaria, mas, em seguida, vieram os problemas decorrentes dos resíduos subterrâneos.
A interdição, em 2012, foi feita por questões de segurança, e, nessa época, professores e alunos afirmaram ter passado mal após longos períodos de permanência na escola.
Para a reabertura, no início de 2017, a Secretaria de Educação instalou equipamento para filtragem do ar. Aferido ao menos três vezes por dia, o índice de concentração de metano não chega a 1% em relação ao ar. Antes, ultrapassava os 30%.
“Tinha muita criança, tráfico de drogas, alimentos vencidos, carro desovado queimado”, relembra a diretora-presidente da autarquia, Kátia Campos.
Em abril daquele ano, por determinação do governador Rodrigo Rollemberg, um grupo de trabalho com diversos órgãos começou a elaborar um plano de intervenção para encerrar as atividades irregulares
Uma das primeiras ações foi proibir a entrada de alimentos vencidos ou próximo de vencer vindos de supermercados e shopping centers. Parte do lixão era utilizada durante anos para esse tipo de descarte. Entre os catadores havia crianças e adolescentes, e produtos impróprios para a saúde eram consumidos e comercializados.
Antes disso, uma instrução normativa já havia determinado que prestadoras de serviço e pessoas que não trabalhavam no SLU deveriam se identificar para ter acesso ao lixão. A entrada ficou restrita à portaria principal, e foi iniciado o registro de ingresso e saída.
Outras medidas adotadas foram a colocação de placas sinalizadoras, o asfaltamento de uma das entradas, a criação de uma área de convivência e a instalação de banheiros químicos.
“Desde 2015, o lixão da Estrutural foi transformado em aterro controlado. Drenamos e queimamos o gás; drenamos o chorume; cercamos todo o perímetro; fizemos um fosso para evitar a entrada de carros sem autorização; compramos uma balança; e colocamos pesagem totalmente automatizada nos caminhões”, lista Kátia Campos.
Foi a primeira vez que se instituiu o grupo, previsto na Lei nº 660, de 27 de janeiro de 1994. São 44 conselheiros, entre titulares e suplentes, representantes da sociedade civil e do governo.
Já em 2016, foi contratada consultoria para ajudar nos estudos para a elaboração, pelo governo, do Plano Distrital de Saneamento Básico e do Plano Distrital de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos. Os documentos abordam soluções de curto, médio e longo prazos que deverão ser implementadas ao longo de 20 anos, com acompanhamentos periódicos.
Novas regras para grandes geradores de resíduos
Até julho de 2017, o SLU era o responsável por recolher e dar destinação tanto ao lixo domiciliar dos moradores do DF quanto aos resíduos dos grandes geradores não residenciais.
![Mulher descarta saco lixo em caçamba de lixo](https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2018/01/grandes-geradores-20072017-andre-borges-agencia-brasilia-1024x430.jpg)
A Lei nº 5.610, de 16 de fevereiro de 2016, transferiu aos grandes geradores a obrigação de cuidar dos resíduos produzidos por eles, por meio de equipe própria ou contratação de empresa cadastrada no SLU. A legislação não se aplica a residências.
Prazos escalonados para o cumprimento da norma passaram a ser cobrados a partir de agosto de 2017, e a retirada dos recicláveis secos é mantida pelo SLU para aqueles que desejarem. As normas contribuíram para reduzir a quantidade de resíduos do lixão.
Grandes geradores são estabelecimentos que produzem diariamente, em média, mais de 120 litros de lixo não reciclável, como papel higiênico, fralda descartável, absorvente íntimo e peças de louça. Exemplos são terminais rodoviários, aeroportos, empresas de prestação de serviços e comércios, como shoppings, supermercados, restaurantes e até padarias.
Com o encerramento das atividades, as sobras da construção civil continuarão indo para a Estrutural, até a implementação de espaços para acomodá-las.
O restante segue, após triagem, para o Aterro Sanitário de Brasília, cujas obras foram retomadas em 2015, em uma área entre Samambaia e Ceilândia. Projetada para comportar 8,13 milhões de toneladas de lixo, a construção é dividida em quatro etapas.
O local recebe apenas rejeitos (materiais não reutilizáveis) — método que minimiza impactos ambientais e que está previsto na Política Nacional de Resíduos Sólidos.
![Imagem aérea de um caminhão no Aterro Sanitário de Brasília. Há muito lixo atrás do caminhão.](https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2018/01/aterro-samambaia-gabriel-jabur-agencia-brasilia-1024x631.jpg)
São 760 mil metros quadrados de área, 320 mil deles para rejeitos. A primeira etapa tem 110 mil metros quadrados e é dividida em quatro células de aterramento.
Diferentemente do lixão da Estrutural, a disposição dos rejeitos no aterro é precedida por uma série de cuidados. Diversas camadas têm o papel de evitar a contaminação do lençol freático.
A mais profunda delas tem 1,25 metro de terra compactada. Por cima, há uma manta de polietileno de alta densidade. Essas duas partes impedem que o chorume chegue ao solo. A camada da superfície, de 50 centímetros de terra, é a que recebe os rejeitos e protege a manta de possíveis danos.
Abaixo de todas essas camadas há drenos de captação de águas subterrâneas, que evitam rupturas motivadas pela pressão desse líquido. Outra técnica é a compactação diária do lixo, o que reduz o volume e evita a proliferação de animais, como roedores e urubus.
Em 2017, o Aterro Sanitário de Brasília recebeu 260 mil toneladas de rejeitos.
ATERRO SANITÁRIO DE BRASÍLIA
Como forma de compensá-los pela redução da demanda de resíduos, os cadastrados das cooperativas que trabalham nessas áreas de triagem têm direito a receber mensalmente uma ajuda financeira temporária.
Ao grupo, além dos valores recebidos pela venda do material triado, o governo paga por tonelada comercializada.
Além disso, cooperativas e associações que têm local adequado de trabalho e foram selecionadas por chamamento trabalham como contratadas pelo governo para prestar os serviços de recuperação de resíduos sólidos — o que inclui recepção, triagem, prensagem, enfardamento, armazenamento e comercialização. Essas também têm direito a uma quantia por tonelada comercializada.
![Catadores de material reciclável vão trabalhar em galpões de triagem alugados pelo governo de Brasília.](https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2018/01/galpao-triagem-materiais-reciclaveis-ceilandia-tony-winston-agencia-brasilia.jpg)
A política para catadores envolve ainda a seleção para atuarem como agentes de cidadania ambiental. Eles recebem bolsa mensal e agem como multiplicadores de informações voltadas à gestão e à educação ambiental e sustentável.
Para a inserção dos filhos dos catadores, uma alternativa tem sido o Brasília + Jovem Candango — programa de aprendizagem que promove a integração ao mercado de trabalho em órgãos públicos do DF de jovens que se encontram em situação de vulnerabilidade social.
Catadora de materiais recicláveis há 18 anos, Lucia Fernandes do Nascimento, de 42 anos, conta que saiu de Luziânia (GO) em busca de melhores condições de vida. Fez morada na Cidade Estrutural.
Trabalhando no depósito a céu aberto, conseguiu erguer a casa própria e adquirir outros bens. “O lixão, para os catadores, foi bom, mas lixão nenhum é digno de ser humano trabalhar. A gente trabalhou lá por necessidade”, avalia.
As mudanças ajudaram a cooperativa a crescer. Hoje, além do trabalho no galpão, o grupo está cadastrado no SLU para atuar na coleta, no transporte e na destinação final dos resíduos produzidos pelos grandes geradores. Além disso, uma associação formada boa parte por cooperados da Coorace foi uma das contratadas pelo SLU para prestar serviços de coleta seletiva.
COLETA SELETIVA
Em pesquisa de opinião feita em 2016 sobre a qualidade dos serviços prestados pelo SLU, 58% dos consultados que disseram não contar com esse serviço onde moram afirmaram, ainda assim, separar o lixo que produzem.
No estudo, feito em parceria com a Codeplan, foram ouvidas 4.088 pessoas, nas 31 regiões administrativas.
Outro dado apresentado à época diz respeito às competências de gestão do SLU. Para 89,6% dos entrevistados, a coleta é o único serviço prestado. Pintura de meios-fios foi um ponto que provocou dúvidas: 56,6% não responderam ou disseram que essa não era responsabilidade da autarquia.
Cerca de 100 trabalhadores das coletas de lixo convencional e seletiva no DF se ferem, por ano, com materiais cortantes e pontiagudos descartados de maneira incorreta, a exemplo de garrafas, espelhos, latas e espetinhos de churrasco. Uma dica é embalar vidros (inteiros ou quebrados) e outros materiais cortantes em folhas de jornal.
Papa-entulho e papa-lixo: reforços para organizar a limpeza urbana no DF
Para reforçar a limpeza das regiões, sete papa-entulhos ficam à disposição dos moradores: dois em Ceilândia e os demais em Brazlândia, no Gama, no Guará, em Planaltina e em Taguatinga.
Nessas unidades, cada pessoa pode entregar, por dia, até 1 metro cúbico (equivalente a uma caixa d’água de mil litros) de resíduos de construção, volumosos (como móveis) e restos de podas. Também são aceitos recicláveis, desde que separados e limpos. Há ainda um recipiente específico para óleo usado em frituras.
![Dois homens descartam lixo em um papa-lixo no Pôr do Sol, em Ceilândia](https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2018/01/papa-lixo-por-do-sol-andre-borges-agencia-brasilia-1024x683.jpg)
Qualquer pessoa pode utilizar os equipamentos, apesar de a área que se busque atender inicialmente seja de um raio de 2,5 quilômetros. Para facilitar a busca pelos papa-entulhos, o SLU criou um mapa interativo.
No mapa também é possível saber onde estão os papa-lixo, contêineres semienterrados que permitem armazenar resíduos de forma segura e limpa e minimizam os riscos de proliferação de animais. Assim, facilita-se o serviço em áreas de difícil acesso dos caminhões de coleta, a exemplo do Pôr do Sol, em Ceilândia.
Por dia, o SLU coleta uma média de 2,7 mil toneladas em todo o DF. Ainda segundo cálculos da autarquia, cada brasiliense produz, em média, cerca de 1 quilo de lixo por dia.
“Hoje, não há solução para a questão dos resíduos que não passe por reaproveitamento, reciclagem, compostagem. São técnicas em que se aproveita o que, a princípio, parecia não aproveitável”, ressalta o professor da UnB Pedro Murrieta. “Não há como a sociedade manter esse nível de consumo e continuar como está.”