Menos de 9% do Cerrado está protegido por unidades de conservação e parques nacionais
O período mais intenso da seca ainda nem atingiu o auge, mas o Cerrado já vive às consequências dele. Entre janeiro e meados de agosto, o bioma acumulou 17.326 focos de calor, praticamente o dobro dos 9.184 incêndios identificados na Amazônia no mesmo período, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Embora os números mostrem uma leve queda em relação a 2024, os incêndios permanecem acima da média histórica. A situação se torna ainda mais preocupante ao comparar o Cerrado com outros biomas. “O Cerrado foi o bioma que menos reduziu em relação ao fogo”, ressaltou Ane Alencar, diretora de Ciências do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e coordenadora do MapBiomas Fogo.
As queimadas, muitas vezes iniciadas de forma controlada em áreas agrícolas, acabam fugindo do manejo e se espalham em larga escala, principalmente em regiões de expansão agropecuária. A combinação de estiagem prolongada e chuvas irregulares tem intensificado o avanço do fogo. A ausência de fenômenos climáticos mais intensos, como um La Niña forte, contribuiu para a irregularidade das precipitações.
“A ausência de um La Niña forte resultou em chuvas irregulares, reduzindo queimadas no Pantanal, mantendo-as altas no Cerrado e intercaladas na Amazônia”, explicou Alencar.
A Agência Nacional de Águas (ANA) reforça que o Cerrado atravessa um quadro de seca persistente, ainda que com características diferentes da estiagem em outras partes do país.
Diferentemente da Amazônia, onde o fogo tem efeitos devastadores, no Cerrado ele também pode desempenhar um auxílio extra. Brigadistas realizam as chamadas “queimadas prescritas”, feitas em áreas específicas para prevenir incêndios de grandes proporções e proteger a biodiversidade.
“Uma das prevenções de incêndio no Cerrado é justamente o fogo”, explicou Alencar, destacando a prática de queimadas controladas em parques como o Parque Nacional de Brasília (DF), a Chapada dos Veadeiros (GO), a Chapada dos Guimarães (MT), além dos Campos Ferruginosos (PA) e da Ilha Grande (PR).
Estudos mostram que metade da vegetação original do Cerrado já desapareceu. O uso frequente e descontrolado do fogo é um dos principais fatores desse processo, que gera fragmentação dos habitats, perda de biodiversidade e redução da resiliência natural do bioma.
“Isso acarreta fragmentação, perda de biodiversidade e redução da resiliência do bioma”, destacou Alencar. “A situação se agrava pelo fato de se tratar de um território majoritariamente privado e tem baixa proteção legal.”
Atualmente, menos de 9% da área do Cerrado está protegida por parques nacionais e unidades de conservação. A legislação florestal também é permissiva: permite que fazendeiros desmatem até 80% de suas propriedades, ou 65% em áreas de transição para a Amazônia.
O agronegócio aparece como agente de pressão, mas também sofre os impactos da crise climática. O fogo usado para abrir novas áreas de pastagem e cultivo contribui para os focos de calor, mas os prejuízos atingem o próprio setor.
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) estimou que, apenas entre junho e agosto, os incêndios provocaram R$ 14,7 bilhões em perdas e afetaram 2,8 milhões de hectares, área equivalente ao território da Bélgica. O levantamento aponta prejuízos em solo, infraestrutura rural e produção agrícola.
Além disso, mudanças climáticas já ameaçam a viabilidade da produção de soja, principal motor do agronegócio na região. “Estudos indicam mudanças no ‘envelope climático’ da soja”, alertou Alencar. “As áreas de soja estão ficando com um clima mais seco e mais quente, o que tende a demandar mais irrigação e pressionar ainda mais os recursos naturais.”
Risco para o equilíbrio climático
O Cerrado carrega um dos pilares para o equilíbrio ambiental, funcionando como dreno de carbono: libera CO₂ durante a seca e o absorve na estação chuvosa. Mas essa dinâmica está sob risco. A perda desse papel regulador afetaria não apenas o Brasil, mas também comprometeria os compromissos internacionais de redução das emissões de gases de efeito estufa.
Diante desse quadro, especialistas defendem a necessidade de maior fiscalização, cumprimento da lei e participação ativa do setor privado. “Também é necessário mais sustentabilidade na produção”, acrescentou Alencar. “O Cerrado é de enorme importância para os serviços ecossistêmicos, mas sofre crescente pressão econômica e ambiental.”
Fonte: Jornal Opção