
Após 10 dias de julgamento e quase nove anos de espera, o Tribunal do Júri do Foro Central de Porto Alegre definiu, nesta sexta-feira (10), as sentenças dos quatro réus pelo incêndio da boate Kiss. Os jurados condenaram Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Lodeiro Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão. Veja abaixo o que disseram as partes. Informações do G1 RS.
As penas ainda não foram divulgadas. “No caso como o presente, é preciso referir que se está diante da morte de 242 pessoas, circunstância que, na órbita do dolo eventual, já encerra imensa gravidade”, disse o juiz Orlando Faccini Neto.
O incêndio na madrugada de 27 de janeiro de 2013 em Santa Maria, na Região Central do Rio Grande do Sul, deixou 242 pessoas mortas e outras 636 feridas. As vítimas, em sua maioria, eram jovens estudantes com idades entre 17 e 30 anos, moradores da cidade universitária.
A tragédia é a maior ocorrência em número de vítimas na história do Rio Grande do Sul e a segunda do Brasil, atrás apenas do incêndio do Gran Circo Norte Americano, em Niterói (RJ), que deixou 503 mortos em 1961.
A realização do júri encerra uma longa espera de familiares, sobreviventes, réus, testemunhas e também da comunidade de Santa Maria. No plenário onde as audiências foram realizadas, em tendas de familiares montadas ao lado do fórum e na cidade onde ocorreu a tragédia ou pela cobertura da imprensa, a expectativa do público pelo desfecho era grande.
Passados mais de 3,2 mil dias desde o incêndio, o caso foi analisado pela polícia e pelo Ministério Público, chegando ao Poder Judiciário. O período se deve a inúmeras etapas do processo, entre apresentação da denúncia, recursos, embargos e pedidos de desaforamento e desmembramento do júri.
Com as sentenças definida, tanto os réus quanto o MP podem recorrer da decisão, mas os tribunais só poderão modificar a pena ou determinar a realização de novo julgamento, sem modificar a decisão dos jurados.
Julgamento
Elissandro Spohr, conhecido como Kiko, foi o primeiro dos quatro réus a ser ouvido durante o julgamento. Durante sua fala, muito emocionado, se dirigiu às famílias das vítimas que acompanhavam a sessão no plenário.
“Eu não quis isso, eu não escolhi isso. Eu não aguento mais. Eu aprendi a chorar em silêncio dentro de uma cadeia. Por que isso foi acontecer na Kiss? Era uma boate boa, todo mundo era amigo. Eu virei um monstro de um dia para o outro. Eu estava lá”, gritou.
O sócio da casa noturna disse que fez as adequações pedidas para reduzir a poluição sonora na boate. Ao ser questionado sobre a contratação da Gurizada Fandangueira, Kiko diz que não sabia que a banda usava artefatos pirotécnicos em shows.
Durante o interrogatório, o juiz questionou por que ele não exprimiu o pesar às famílias ao longo dos últimos oito anos.
“Não existe o que falar, não tem uma explicação que consiga dar. Fiquei como culpado. Vou falar o quê?”, disse.
O advogado Jader Marques, que defende Kiko, classificava o júri como uma oportunidade para que seu cliente desse a sua versão do que aconteceu na data.
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Kiko Spohr chora em depoimento no júri do incêndio da boate Kiss — Foto: Juliano Verardi / IMPRENSA TJRS
Mauro Hoffmann disse, em interrogatório, que ingressou na sociedade da Kiss em 2011, quando a casa noturna já era gerida por Elissandro Spohr. “Nunca me intitulei dono”, disse. “Eu não tinha a chave da Kiss”, completou.
Na noite da tragédia, Mauro havia passado na boate cedo, e ido pra casa. Foi avisado pelo sócio Elissandro sobre o incêndio, e voltou correndo para a Kiss.
“Era muita fumaça, as pessoas trancaram muito no [ponto de] táxi. Uma tragédia é uma sucessão de pequenas coisas. Tudo atrapalhou”, afirmou o réu.
Antes do júri, o advogado de defesa de Hoffmann, Mario Luis Cipriani, afirmou que o cliente não tinha qualquer participação na rotina da empresa.
Conforme a denúncia do MP, Kiko e Mauro foram responsáveis pelos crimes e assumiram o risco de matar por terem usado “em paredes e no teto da boate espuma altamente inflamável e sem indicação técnica de uso, contratando o show descrito, que sabiam incluir exibições com fogos de artifício, mantendo a casa noturna superlotada, sem condições de evacuação e segurança contra fatos dessa natureza, bem como equipe de funcionários sem treinamento obrigatório, além de prévia e genericamente ordenarem aos seguranças que impedissem a saída de pessoas do recinto sem pagamento das despesas de consumo na boate”.
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Mauro Lodeiro Hoffmann, 56 anos, sócio da boate Kiss, durante o júri — Foto: Juliano Verardi / IMPRENSA TJRS
Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira, ergueu o artefato pirotécnico, que iniciou o incêndio ao tocar a espuma que revestia a boate. Aos jurados, Marcelo comentou que o uso de fogos de artifício nas apresentações era conhecido.
Durante a apresentação, o músico recebeu o artefato, acoplado em uma espécie de luva. O fogo de artifício que foi acionado no refrão, quando o cantor ergueu a mão.
“Fiz a coreografia. Tirei a mão, o Luciano tirou a luva de mim, guardou, continuamos tocando”, recordou.
Ao ser advertido de que o teto pegava fogo, ele larga o microfone, pega o extintor e grita “fogo” para quem estava próximo.
“Eu disse vou apagar. Na minha cabeça eu ia apagar. Tive uma chance só de apagar o fogo e a chance que eu tive eu não consegui. O extintor não funcionou. Entrei em desespero de cima do palco, não sabia o que fazer”, relatou, emocionado.
Para a advogada de Marcelo, Tatiana Vizzotto Borsa, ouvida antes do júri, o músico é mais uma vítima da tragédia.
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Marcelo de Jesus do Santos durante o júri da Kiss — Foto: Reprodução/TJ-RS
Luciano Augusto Bonilha Leão, auxiliar da banda Gurizada Fandangueira, acionou o artefato pirotécnico que iniciou o fogo na boate. Em interrogatório, ele lembrou o que ocorreu no dia do incêndio.
“Tenho consciência tranquila que não foi meu ato que tirou a vida desses jovens. Se for pra tirar as dor dos pais, eu tô pronto, me condenem”, afirmou.
O réu contou que a banda já havia feito ao menos nove shows com artefatos pirotécnicos. Na Kiss, ele recorda de duas apresentações com fogos. Luciano ainda afirmou que a banda não sabia que o teto do palco havia sido rebaixado e revestido de espuma.
“Se eu tivesse morrido lá, hoje sentada aqui tem a maior joia da minha vida, que é a minha mãe. Ela ia tá ali sentada com eles [familiares]”, sustentou.
Luciano acendeu o fogo de artifício, passou para o vocalista Marcelo de Jesus, e permaneceu junto ao palco, conforme relatou no júri.
O advogado que defende o auxiliar, Jean Severo, alega que o cliente não é culpado, mas uma vítima.
O MP afirma que Marcelo e Luciano foram responsáveis porque “adquiriram e acionaram fogos de artifício (…), que sabiam se destinar a uso em ambientes externos, e direcionaram este último, aceso, para o teto da boate, que distava poucos centímetros do artefato, dando início à queima do revestimento inflamável e saindo do local sem alertar o público sobre o fogo e a necessidade de evacuação, mesmo podendo fazê-lo, já que tinham acesso fácil ao sistema de som da boate”.
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Réu Luciano Bonilha Leão se emociona durante júri da Boate Kiss — Foto: Juliano Verardi/Imprensa TJ-RS
Veja os depoimentos dos sobreviventes:
- Kátia: ‘comecei a gritar que não queria morrer’, diz ex-funcionária que teve corpo queimado
- Kelen: ‘última vez que corri foi para tentar me salvar’, diz sobrevivente que teve perna amputada
- Lucas: ‘eu desmaiei, fui muito pisoteado’, diz DJ da boate
- Delvani: ‘fui caindo e me despedindo da minha família’
O que disseram as testemunhas e informantes:
- Engenheiro diz que sugestão de sócio para instalar espuma acústica era ‘leiga e ignorante’
- Juiz transforma testemunha em informante após filha postar ‘apodreçam na cadeia’
- ‘Ele sofre por isso’, diz ex-patrão de vocalista da banda ouvido em audiência
- Irmão de réu e ex-integrante da banda chora no júri da Kiss: ‘nós não quisemos matar ninguém’