‘Máfia das funerárias’ no DF usava emoção de parentes para elevar valor do golpe

Por Mara Puljiz, Rita Yoshimine e Mateus Rodrigues, TV Globo e G1 DF

A “máfia das funerárias” que fez centenas de vítimas no Distrito Federal, revelada nesta quinta-feira (26) pela operação Caronte, apelava para a emoção das famílias para elevar o valor dos serviços, e o prejuízo causado às vítimas. A estratégia para extorquir dinheiro é descrita em conversas gravadas pela Polícia Civil, com autorização da Justiça, e obtidas pela TV Globo.

Em um dos áudios, o médico Agamenon Martins Borges conversa com um empresário, dono de funerária, sobre a melhor forma de convencer as famílias a investir nos documentos e no sepultamento. Segundo a polícia, Agamenon já prestou serviços ao Instituto Médico Legal (IML).

Agamenon: Rapaz, se você fica vendendo caixão, o povo raciocina: “Caixão, um objeto, que vai pra debaixo da terra”. Se você vende homenagem, você vai na emoção da pessoa. Alguém vai falar “não, a homenagem não é barata?”

Empresário: Pronto, achei o mentor. O mentor foi melhor do que os outros.

Agamenon: Rapaz, eu quero a melhor coisa para a minha mãe. Aí você vai, ao invés de você vender por R$ 1800, você vai vender por R$ 5800.

Agamenon Borges foi preso nesta sexta-feira, junto com outras oito pessoas. A lista é formada por um vigilante do Hospital Regional de Taguatinga (HRT), um servidor público, cinco agentes funerários e um falso médico foram presos.

G1 tenta contato com a defesa dos envolvidos. Até a publicação desta reportagem, três agentes funerários com suposta participação no esquema ainda estavam foragidos.

 Convencimento

Os áudios que constam no inquérito da operação Caronte também mostram o contato direto entre as funerárias envolvidas e as vítimas. De acordo com a investigação, o grupo interceptava a frequência de rádio da Polícia Civil, descobria o local de mortes naturais (não violentas) e entrava em contato com as famílias, antes mesmo que o IML pudesse agir.

Agente funerário: Em se tratando de uma morte aparentemente natural, se o médico fosse ajudar vocês nesse momento, não haveria necessidade de o corpo dele vir pro IML, né.

Vítima: Certo.

Agente: Porque foi uma morte natural, evitaria de abrir o corpo sem necessidade, né.

Vítima: Ah, legal. É, assim, porque na realidade a gente não gosta que vai mesmo, né. Porque você saber que é todo um… né, abrir, é uma sensação ruim.

Agente: Se o corpo vier pro IML, o corpo dele sendo necropsiado, é aberto. E não tem necessidade porque foi uma morte natural, minha querida.

Os áudios levaram os investigadores a desconfiar até da participação de policiais civis e funcionários do IML no esquema criminoso, em um primeiro momento. Depois, ficou comprovado que, na verdade, os servidores também eram lesados pela atuação do grupo.

“Uma vez feito isso [o primeiro contato com a vítima], esses agentes funerários entravam em contato com a delegacia da área, se passando por familiares da vítima, e solicitavam o cancelamento do serviço de remoção do cadáver. Aí, o ciclo se fechava”, afirma o diretor de Assuntos Internos da Corregedoria da Polícia Civil do DF, delegado Marcelo Zago.

 Esquema articulado

De acordo com os investigadores, o esquema conseguia agir também para “interceptar” as mortes ocorridas em hospitais. Nestes casos, funcionários das unidades de saúde avisavam as funerárias, que faziam contato direto com os parentes. Um vigilante terceirizado do HRT é citado no inquérito como interlocutores do grupo, e suspeito de receber propina por cada morte informada.

Jazigos do cemitério de Taguatinga, no Distrito Federal (Foto: Gabriel Luiz/G1)

Jazigos do cemitério de Taguatinga, no Distrito Federal (Foto: Gabriel Luiz/G1)

Ao todo, o pacote de serviços era vendido por até R$ 6 mil. Segundo o inquérito, o grupo emitia atestados de óbito e definia a causa das mortes por telefone, mesmo sem ver o cadáver.

“O que não pode, o que é antiético, o que é criminoso é o médico declarar um óbito sem, sequer, ver o falecido ali à sua frente. Isso é crime”, afirma o promotor de Justiça de Defesa da Saúde do Ministério Público do DF, Maurício Miranda.

Em nota, a secretaria de Saúde informou que vai substituir o vigilante do HRT, e que já enviou o caso para a unidade de correição da pasta.

 ‘Caronte’ 

A operação, batizada de Caronte, faz referência ao “barqueiro dos mortos” na mitologia grega, que leva as almas pelo rio Estige para entregar ao deus Hades. A investigação começou em abril deste ano, após servidores do IML desconfiarem da ação dos criminosos.

A suspeita surgiu porque, em um dos casos, o carro de remoção do instituto (conhecido como ‘rabecão’) chegou a um endereço para recolher o cadáver, antes mesmo que a família pudesse ligar para informar do cancelamento. No local, servidores ouviram dos familiares que “a morte já tinha sido atestada por um médico do IML” – neste caso, um integrante do esquema criminoso.

De acordo com a polícia, as prisões e buscas desta quinta representam apenas “a primeira fase” da Operação Caronte, e há expectativa de que o esquema seja muito maior. Os investigadores já identificaram 30 famílias, mas acreditam que muitas vítimas ainda não se deram conta do golpe.

Os presos vão responder por associação criminosa, estelionato, falsidade ideológica, interceptação ilegal, usurpação de função pública, falsidade de atestado médico, corrupção ativa e passiva.

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