Sons e fé: milhares de baianos vão ao Rio Vermelho celebrar Iemanjá

 

Já na madrugada deste Dois de Fevereiro, baianos e turistas tomavam o bairro do Rio Vermelho para esperar a tradicional alvorada que abre os festejos da festa de Iemanjá. Este ano, a música fez toda a diferença na madruga. Diversas atrações culturais que se apresentaram em locais como o Lalá Multiespaço foram um chamariz. O Rio Vermelho amanheceu cheio e musical. Informações do Correio da Bahia.

O canto da sereia atraiu a todos para a praia. Seja de religiões de matriz africana ou não, muita gente se aproximou o máximo que pôde das águas para depositar flores e outros presentes para a Rainha do Mar. Uns até fretavam barcos a R$ 10 depois de adquirir uma muda de rosa por R$ 3. Nesse momento, o som das dezenas de instrumentos musicais de terreiros na areia embalaram orações. No candomblé é assim. Sem música não há festa. Sem festa, não há fé.

Rio Vermelho celebra Iemanjá, a Rainha do Mar (Foto: Evandro Veiga )
(Foto: Evandro Veiga/CORREIO)

A música, no entanto, não ficou restrita à beira do mar. Por todos os cantos do Rio Vermelho, foram ouvidos sons e cânticos de uma multidão encantada – seja no lado místico, seja admirada – com a alegria da festa. “É a música saudando os orixás. Eu gosto da música. É a música que faz a festa, traz a alegria”, afirmou Mãe Nicinha, do Centro Xangô, da cidade de Santa Bárbara, no Centro-Norte do estado. De outras cidades, outros estados, outras mães, pais, filhos de santo também chegaram, cada um num ritmo próprio.

De Boquim, no interior de Sergipe, uma caravana de fieis manifestou sua fé no embalo dos timbaus. Em volta de um barquinho preparado para levar presentes para a soberana, bem em cima do palco Raul Seixas, dançaram e saudaram a orixá. “Nós comemoramos a data dela no mês de dezembro, viajando para Aracaju, e viemos agora também porque hoje é o dia dela aqui”, explica Lucielma de Jesus Santos, 37, uma das 50 pessoas do Centro de Umbanda São Cosme e São Damião – Olho de Oxalá, na festa pela segunda vez consecutiva.

Conforme o Sol vai subindo, sobe também o volume e quantidades dos sons. Sotaques do mais variados possíveis, batuques para todos os gostos, marchinhas, fanfarras, cantos, rezas, sons de drones e helicópteros. Ouve-se de tudo nas ruas do Rio Vermelho neste dia.

Os ritmos mudam a cada metro caminhado no bairro. Sob o barracão da Colônia dos Pescadores, era possível ouvir o tradicional samba de roda puxado a toques de atabaque e agogô e certeiras batidas de mão. A poucos metros dali, passeando pela Rua Guedes Cabral, uma anárquica e descontraída fanfarra tocava sucessos que embalaram carnavais de anos trás, como “Chupa Toda”, e o hit “Me Libera Nêga”, que promete tomar a avenida nos próximos dias.

Na busca pela sobrevivência, os vendedores ambulantes também compuseram uma sinfonia própria. “Picolé!”, “Purucuca!”, “Piriguete duas por cinco!”, são apenas algumas das frases desta singular partitura.

A multiplicidade de sons ouvidos no festejo dialoga com a pluralidade da homenageada. Iemanjá, que também se escreve Yemanjá, é conhecida ainda por Mãe-d’água, Rainha do Mar, Dandalunda, Inaé, Ísis, Janaína, Marabô, Maria, dentre outras denominações.

Rio Vermelho celebra Iemanjá, a Rainha do Mar (Foto: Evandro Veiga )
(Foto: Evandro Veiga/CORREIO)

O som que traz o santo
‘O pessoal do Centro Deus Dará’, de Bonfim de Feira, também fez parte da trilha sonora da festa. Pai Elias, que comanda o grupo entoa a canção e, em seguida, a fanfarra já entende e toca, enquanto o santo lhe incorpora. “O som do mar e a música, para nós que somos da umbanda, é importante porque nos deixa feliz e ela também”, explica ele, depois do transe. O grupo, também com 50 pessoas, chegou ao local ainda na madrugada, por volta das 2h.

E se festa é sinônimo de música e dança, foi nos corpos de alguns de seus filhos que Iemanjá e outros orixás se agitaram com o som que saía dos timbaus, durante todo o dia. No meio da dança, um senhor se aproxima do grupo de percussão de Pai Elias e faz um gesto de tirar o ‘suor’ do instrumento. Em seguida, ele usa o líquido imaginário para fazer uma cruz na testa. Alguns observadores não entendem e especulam explicações. São cenas como essa que fazem da festa uma comemoração tão emblemática. Desde sempre, as religiões tentam nos explicar o inexplicável. Pelo jeito, os segredos do mar de Janaína continuam a encantar.

Rio Vermelho celebra Iemanjá, a Rainha do Mar (Foto: Evandro Veiga )
(Foto: Evandro Veiga/CORREIO)

Quando chega o silêncio
Há um momento, porém, onde o silêncio reina. Ainda que este seja particular. Individualizado. Momentos antes de depositar a oferenda à Rainha do Mar, cada devoto se concentra, pisa os pés na água e, naquele momento, apenas o bater das ondas do mar é ouvido.

Assim, em silêncio, o uruguaio Gabriel Mendoza, 30 anos, que há nove vive em Salvador, ofereceu rosas à Janaína. Desde que chegou à capital baiana veio quase todas as vezes à festa de Iemanjá. No entanto, Gabriel já celebrava a Rainha do Mar na sua terra natal. “Minha mãe é muito devota de Iemanjá e ela me passou essa tradição”, disse o hermano.

Em comparação com a celebração dos nossos vizinhos sul-americanos, Gabriel afirma que por aqui há mais festas. “Certamente aqui é mais forte a questão do festejo popular. Lá no Uruguai só quem quer realmente homenagear a Rainha do Mar, são os religiosos e um ou outro curioso. Aqui, muita vem gente vem só pela festa. Simplesmente para se divertir”, disse.

Reservado, ele não revela o que costuma pedir ao orixá. “Esse é um segredo apenas meu e dela, mas eu sei o que posso e o que não posso pedir”, disse. E completou: “mas hoje eu vim apenas para agradecer”.

Filha de pais devotos da mãe de todos os orixás, a fonoaudióloga Heive Rocha, 32, é mais uma soteropolitana que carrega nas raízes familiares o amor à Sereia do Mar. “Tenho muita fé na espiritualidade e nos orixás. Essa é uma relação que graças aos meus pais foi construída ainda na minha infância e eu trago comigo até hoje”, disse emocionada.

Heive contou ainda que ao longo da sua vida desenvolveu também uma forte relação com Oxum, orixá que rege as águas doces e que também é celebrado no 2 de fevereiro. “Essa rosa amarela que trago comigo é para oferecer a ela (Oxum)”. Para Heive, neste dia circula uma energia diferente na cidade e isso move toda aquela gente até o Rio Vermelho.

As dificuldades para se locomover não são empecilhos para a dona Ester Barbosa, 70, comparecer à

Praia da Paciência no 2/2. Frequentadora da festa desde pequena, dona Ester viu as mudanças, inclusive sonoras, da celebração. “Hoje tem mais alegria, mais gente, mais música e cada ano que passa fica melhor. Antigamente, era mais simples, mas sempre foi bonita”, disse.

Apoiada em duas muletas que utiliza para caminhar com mais firmeza, dona Ester saiu do bairro da Suburbana, onde mora, para prestar sua homenagem. “Saí às 11h de casa e só cheguei agora [às 15h], mas todo esforço vale a pena. Essa é a melhor festa religiosa que tem”, vibrou com brilhos nos ollhos.

Ela garante que ao longo de toda a sua vida só deixou de ir para a festa em duas oportunidades. “Estava muito doente e tive que ver as coisas pela TV, foi muito sofrido para mim”, afirmou. A fé da aposentada na Rainha das Águas aumentou ainda mais quando há 11 anos nasceu o neto dela, Wesley. “Foi um presente que eu ganhei”.

Rio Vermelho celebra Iemanjá, a Rainha do Mar (Foto: Evandro Veiga )
(Foto: Evandro Veiga/CORREIO)

A entrega do presente
Tão agurada quanto a alvorada, a entrega do presente à Iemanjá também veio acompanhada de muito som. Emocionados, os milhares de devotos que acompanhavam o carregamento do barco que recebeu a imagem, que este ano foi preparada no terreiro da Mãe Jaciara de Obaluaê, em Itinga, receberam a escultura com uma calorosa salva de palmas.

O movimento barco, o bater dos remos na água, o zumbido do vento, tudo isso serviu de melodia para os pedidos que soavam como música conforme a imagem ia se afastando da costa. “Que leve tudo de ruim para o fundo do mar”, disse uma devota. “Lava esta terra, minha mãe”, rogava outro. E assim, o canto da Sereia mostrou que é também a expressão de todo um povo.

Aboio no mar
Neste Dois de Fevereiro até o sertão encontrou o mar. A trilha sonora dessa romântica união foi entoada pelo não menos poético berrante. O feirense Neto do Berrante, 42, pela terceira vez atravessou os mais de 100 KM que separam Feira de Santana de Salvador para saudar o presente de Iemanjá.

Vestido a caráter, com chapéu de peão e cinto de fivela, Neto soou com firmeza o grave do instrumento usado na lida com os bois e arrancou aplausos daqueles que aguardavam a saída dos barcos. “Represento cada sertanejo que não pôde vir, mas que certamente também tem uma fé em Iemanjá. Porque ela também traz a vida, traz os peixes que traz o sustento”, disse Neto.

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