TATIANA FARAH, O Globo
A tortura, detalhada quase de forma didática pelo coronel reformado Paulo Malhães, que matava e desaparecia com os corpos das vítimas da Casa da Morte, é uma constante na História do Brasil, onde Amarildos são mortos em delegacias e Cláudias são arrastadas por viaturas sem o devido tratamento médico. Esta é a opinião da historiadora Dulce Pandolfi, pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDoc), da FGV. Em 1970, militante da Ação Libertadora Nacional, Dulce foi, ela mesma, uma cobaia de aulas de tortura praticadas pelos militares. Ficou um ano e quatro meses presa.
Para Dulce, apesar de “estarrecedor”, o depoimento do coronel traz algo positivo: coloca o tema da tortura na pauta do país e pode ajudar a combater essa prática que, segundo ela, se “naturalizou” no Brasil.
Divulgado com exclusividade pelo GLOBO, o depoimento de Malhães também revela, na opinião da historiadora, que “o coronel era apenas uma peça de uma cadeia”, que envolve todo o regime.
– Ele não pode ficar completamente intocável – diz ela.
Qual a importância do depoimento do coronel Paulo Malhães? Ele traz novas informações ou corrobora com o que já se apurou do período?
É um depoimento de extrema importância. Essa questão da tortura no Brasil sempre foi muito silenciada, por conta de toda uma especificidade do caso brasileiro, da maneira como a gente fez a nossa transição, como a lei da Anistia foi aprovada. Ficávamos nós, os torturados, denunciando a tortura. O outro lado, apenas e no máximo, reconhecendo que algumas pessoas cometeram alguns excessos. E a sociedade brasileira passando ao largo disso, convivendo com outras torturas que ocorrem desde o período colonial e que continuam ocorrendo hoje. Quando um coronel, que participou do sistema repressivo, diz uma coisa dessas, é crucial porque o debate começa a ganhar corpo. A tortura se torna um tema, uma pauta.
Defensores do regime militar dizem que aquele período era um estado de guerra e que mortes, prisões e violência ocorreram por causa disso. Quando o coronel fala que arrancava os dedos das mãos e as arcadas dentárias dos mortos para evitar a identificação, essa afirmação desmonta a tese da guerra?
Nem em guerra se faz isso. Em guerra, as pessoas respeitam os prisioneiros. Primeiro que eles falam em guerra, mas não era guerra. Era um exército violentamente armado contra pessoas que estavam lutando contra a ditadura militar no Brasil. Eles estavam torturando e matando. Nada justifica a tortura, que é considerada hoje um crime de lesa-humanidade. É hediondo e injustificável. Mesmo que houvesse uma guerra, esse tratamento seria inaceitável. O que acho mais grave é que não foram coisas feitas por pessoas ensandecidas. O que o depoimento de Paulo Malhães revela é que ele era uma peça, uma ponta de uma cadeia, o regime estava envolvido. Ele diz isso em vários momentos. É um depoimento muito rico, que não pode acabar por aí. Tem de se ouvir mais pessoas. E que essas pessoas venham a ser julgadas. Anistia não é para um caso desses, como é que o Malhães pode ser anistiado?
A partir do momento em que ele confessa que desaparecia com os corpos, ele poderia ser enquadrado no crime de ocultação de cadáver, que o Ministério Público Federal considera um crime permanente. A senhora acredita que ele seja processado por isso?
Eu defendo que ele seja processado, claro. E é o que dizemos há muito tempo: anistia não é esquecimento. Essas pessoas têm de ser julgadas. Aquela anistia, naquele momento, foi a anistia possível, mas, a partir do momento em que essas pessoas estão aparecendo para reconhecer e admitir isso tudo, é claro que não podem ficar completamente intocáveis.
A senhora vê ligação entre a história que Malhães revela e os casos recentes de tortura e morte no Brasil, como o de Amarildo ou o de Cláudia?
Tudo isso tem uma ligação, porque fica-se banalizando essas situações. Um país que banaliza ou que admite a tortura. A tortura não pode ser realizada. Uma coisa é um prisioneiro ser condenado pelo Judiciário e cumprir uma pena. Esse é o ponto. A tortura não está prevista em nenhum artigo, em nenhuma lei, e é um crime de lesa-humanidade. Por que acontecem os casos “Amarildos”? Porque no Brasil se tem a noção da impunidade: “eu posso fazer”. Se naturalizou esse tipo de prática. A tortura existe desde que o Brasil é Brasil e tem de colocar um fim nisso.
A senhora pode falar sobre seu passado, sua prisão? Tem companheiros que morreram na Casa da Morte?
Eu fui condenada por ser da ALN. Todas essas organizações saíram do PCB. Fiquei presa um ano e quatro meses. Fui barbaramente torturada, fui objeto de aula de tortura. Vários companheiros foram presos naquela época. Uma das pessoas com quem fui acareada, porque eles faziam isso, foi o Bacuri (Eduardo Collen Leite). Mataram o Bacuri, não sei se mesmo na Casa da Morte ou em outro lugar. O que ainda está sendo apurado. A Casa da Morte surge em um momento de aperfeiçoamento, a tortura do regime militar vai se aperfeiçoando. E Manhães é até muito didático nisso, quando ele diz por que desaparecer com as pessoas, é estarrecedor. Ele diz uma frase que é impactante: a morte, as pessoas choram, mas depois esquecem, e o desaparecimento é eterno. O que é verdade. Essas famílias estão até hoje em busca de seus mortos, querem enterrar os seus corpos. Sobre as aulas de tortura, é muito chocante pegar uma vítima, retirar de uma cela, e usar requintes de crueldade sem nem mais estar querendo obter informações. Há um ódio subjacente (por parte dos torturadores). O objetivo era exclusivamente eu ser cobaia para se mostrar para os outros, porque eles estavam em um processo de aprendizado, como diz Malhães no depoimento. Estavam tentando mostrar quais as técnicas mais eficazes.