
Se por um lado a instituição que lida diariamente com a vida das pessoas se vê pressionada pelas amarras da legislação, de outro empresas privadas que já se viram em grandes escândalos, e lidam com interesses econômicos e políticos, conseguem respaldo na justiça para continuarem atuando sem entraves no serviço público. A construtora Delta, por exemplo, foi autorizada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no dia 9 de dezembro, pelo ministro Ari Pargendler, a retornar às concorrências públicas. Desde então, a empreiteira já ganhou cerca de 20 concorrências, conforme revelou Lauro Jardim no Radar Online da Veja nesta sexta-feira (28/02), no texto intitulado “Empreiteira fênix”. Estima-se que a Delta tenha desviado R$ 300 milhões para 19 empresas de fachada entre 2007 e 2012, todas ligadas ao ramo da construção civil. O esquema foi descoberto em investigação da Polícia Federal iniciada no fim de 2012.
A Camargo Corrêa também protagonizou escândalo, sob suspeita de esquema de lavagem de dinheiro. Ação da Polícia Federal batizada de Castelo de Areia revelou indícios de transferências de recursos para políticos de diversos partidos, como PMDB, PSDB, PR, DEM, PCdoB, PSB, PT e PP. O STJ, no entanto, suspendeu o processo e anulou as provas recolhidas pela Polícia Federal. Em 2009, O Ministério Público Federal em São Paulo ofereceu denúncia contra quatro executivos, dois da construtora Camargo Corrêa e outros dois da Andrade Gutierrez, por formação de cartel, fraudes ao processo de licitação das obras do metrô de Salvador e formação de quadrilha. A Camargo Correa está de olho na licitação do BRT Transbrasil e, em janeiro deste ano, moveu ação no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que concedeu mandado de segurança para suspender a licitação.
Drama para pacientes
O menino Miguel está prestes a completar um ano e há dois meses frequenta o Inca para tratar de um câncer que surgiu em sua vista. A mãe, Lorraine, lamenta que o Instituto esteja prestes a perder tantos profissionais de pesquisa, mesmo que sejam substituídos: “O Inca faz um trabalho muito importante. É uma questão de vida”.
O Inca, referência no tratamento de câncer, sofre as consequências de uma estrutura amarrada e ultrapassada. “É difícil se libertar desses grilhões”, destacou o Dr. José Carlos do Valle. Ele foi diretor do Hospital de Oncologia do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social e colaborou também com o Inca como presidente do Centro de Estudos Amadeu Fialho. Foi presidente da Sociedade de Cancerologia do Estado do Rio de Janeiro, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, entre outras funções importantes. “São questões jurídicas, que querem invalidar esse relacionamento do Inca com a FAF, invalidar uma das poucas coisas que ainda funcionam neste país”, alerta. Para o Dr. Valle, o Inca é um dos poucos que se destacam na estrutura pública, junto com outros como o Into e o Instituto de Cardiologia.
O concurso para substituir os funcionários ligados à Fundação do Câncer deve acontecer neste ano, não só na área de pesquisa, como em outros setores. A área de pesquisa, contudo, é a mais sensível, com a atuação de profissionais com 20 anos de trabalho na casa. Alguns, inclusive, que lideram importantes pesquisas.
O diretor-geral do Inca, Luiz Antonio Santini, tem ressaltado a necessidade de mudança do modelo de gestão do instituto, para que este ganhe maior autonomia tanto para gerir seus recursos humanos quanto para decidir outras questões importantes. A proposta do Inca, então, é que possa se tornar uma empresa pública, como o Banco do Brasil. Muitos profissionais se aposentam todos os anos e, como o instituto é um órgão de administração direta do Ministério da Saúde, não pode convocar candidatos aprovados no último concurso – depende de autorização do Ministério do Planejamento. Só que a mudança depende de aprovação no Congresso Nacional, o que pode levar muito tempo.
Sem autonomia, o Inca podia antes contar com a Fundação do Câncer para o suprir a falta de mão de obra qualificada de alto nível. “As coisas não evoluem da maneira que gostaríamos. Na Alemanha e no Canadá, talvez, mas aqui no Brasil ainda é muito ruim. Temos que encontrar um um jeito de se desvencilhar desses grilhões que acorrentam as instituições. No caso da pesquisa é pior, porque é uma área muito mais sensível. É um verdadeiro desastre, um erro que revela certo anacronismo. Como o mundo pode se desenvoler nesses conceitos? É tragicômico”, diz Valle.
Tirar, ou trocar, 538 profissionais de um universo de 3.587 pode parecer pouco, acrescenta Valle, mas este processo engloba pessoas que assumiram funções chave no instituto. Pesquisadores, por exemplo, ao sair, podem desarticular as pesquisas, o que acaba afetando também o trabalho delas.
Como ressaltou o presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Evanius Garcia Wiermann, “construir um pesquisador”, “desenvolver uma mente científica”, é um processo que exige muito tempo e dinheiro, pois se trata de algo muito especializado e específico. Encontrar substitutos no mercado não é fácil, pois trata-se de um “material humano muito caro, do ponto de vista financeiro e também científico”.
“O andamento da pesquisa está vinculado a esses profissionais. Essas pessoas da FAF trabalham lá dentro da mesma maneira que os contratados. O que difere é a forma como são remunerados. Do ponto de vista efetivo, nada muda. A SBOC não tem nenhum poder para influenciar [o que está para acontecer], pois é uma questão legal, jurídica, o que podemos fazer é lamentar se ocorrer essa perda de material humano pelo Inca. A pesquisa no Brasil já não é fácil, quando ainda envolve uma questão técnico legal complica mais”, atesta Wiermann.
Para ele, a parceria entre a FAF e o Inca é estratégia muito boa, eficiente, porque permitiu restaurar o quadro de profissionais de maneira qualitativa, com pessoas altamente qualificadas, tanto na área de atendimento médico como no setor de pesquisas.
A Fundação do Câncer e suas contribuições para o tratamento da doença
O Dr. Marcos Fernando de Oliveira Moraes, ex-diretor do Inca, presidente do Conselho de Curadores da FAF, ajuda a contar a história e a importância da fundação. Ele foi presidente da Academia Nacional de Medicina e participou do Programa Nacional do Câncer, em 1990, que colocou o Inca como um Departamento do Ministério da Saúde. Com o nome oficial de Fundacao Ary Frausino para pesquisa e controle do câncer e hoje com o nome fantasia de A Fundação do Câncer, ela foi criada em 1991 e atua em prol da prevenção e do controle do câncer, explica. É uma instituição sem fins lucrativos que capta recursos e investe em diagnóstico, tratamento, programas e projetos como Transplante de Medula Óssea e de Sangue de Cordão Umbilical, Cuidados Paliativos, Prevenção e Vigilância, Pesquisa, Educação e Ensino em Câncer.
Promover ações estratégicas para o controle do câncer em benefício da sociedade e apoiar o Inca e todas as atividades do Programa Nacional de Controle do Câncer é a missão da Fundação do Câncer. A sua criação foi iniciativa do próprio Marcos Moraes, na época diretor geral do Inca, com o apoio de outros três médicos: Jayme Brandão de Marsillac, Ulpio Paulo de Miranda e Magda Cortês Rodrigues Rezende. Eles buscavam alternativas administrativas econômico-financeiras para ampliar o atendimento aos portadores de câncer e intensificar as ações de prevenção e controle da doença.
Na ocasião, lembra Moraes, o Inca carecia de profissionais e de mecanismos capazes de oferecer os requisitos necessários para um gerenciamento mais efetivo, por conta da burocracia do serviço público. O modelo de gestão adotado – que possibilitou a entrada de recursos da iniciativa privada e também de órgãos públicos e instituições internacionais – assegurou o crescimento contínuo e estável do Instituto.
Durante esses 23 anos de parceria, a Fundação do Câncer adquiriu mais de 10 mil equipamentos e bens para o Inca e chegou a manter 1,5 mil funcionários alocados no Instituto. Atualmente são 583. De 1991 a 1998, por exemplo, a estrutura do Inca foi ampliada de uma para cinco unidades de atendimento público. As áreas de assistência, educação, pesquisa, prevenção e vigilância, e desenvolvimento institucional e humano receberam investimentos expressivos da Fundação que possibilitaram ao Inca exercer sua função. Vale registrar, ressalta, que desde seu inicio até 2011, em valores da época, a Fundação havia repassado e investido no Inca recursos da ordem de R$ 1,5 bilhão, tendo recebido R$1 bilhão do Ministério da Saúde.
A Fundação do Câncer tem na área de pesquisa um de seus focos de atenção. Já na criação do Centro de Pesquisa do Inca, no final da década de 1990, atuou atraindo pesquisadores importantes na comunidade científica e com experiência na implantação e no desenvolvimento de projetos de pesquisa. Com o seu suporte, atualmente a Pesquisa Clínica do Inca tem 123 estudos em curso e 14 novas propostas, e responde pela gestão da Rede Nacional de Pesquisa Clínica em Câncer (RNPC).
As pesquisas na área oncológica abrem caminho para a descoberta de novos marcadores biológicos para a detecção precoce da doença, possibilitam a individualização e a otimização do tratamento, o desenvolvimento de exames mais eficazes e de novos medicamentos, explica Dr. Moraes.
O combate ao tabagismo é uma bandeira histórica da Fundação do Câncer com a área de Controle do Tabagismo do Inca. Graças a esse trabalho, o Brasil se tornou referência internacional por medidas de restrição à publicidade de cigarro, entre outras ações, e conta com o reconhecimento da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da União Internacional Contra o Câncer pelos avanços obtidos.
Pesquisas nacionais realizadas em 1989, 2003 e 2008 (ajustadas pelas diferenças de mostragem), mostram uma diminuição de quase metade na prevalência de fumantes – de 34,8% em 1989, para 22,4 % em 2003, e para 18,2% em 2008 em adultos de 18 anos e mais velhos. “Esse quadro trouxe uma situação inusitada no país: o número de ex-fumantes é maior do que o de fumantes”, ressalta Moraes.
Gerenciada pela Fundação do Câncer desde 2006, a Rede Brasileira de Bancos Públicos de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário – Rede BrasilCord, está em processo de ampliação desde então. Criada em 2001, é formada por 12 bancos públicos que armazenam amostras doadas deste material, rico em células-tronco capazes de produzir os elementos fundamentais do sangue, essenciais para o transplante de medula óssea.
A terceira fase do projeto de ampliação da Rede BrasilCord começou em julho de 2013, com repasse de R$ 23,5 milhões pelo BNDES. Ela abrange a construção de quatro novos bancos de sangue de cordão umbilical em Manaus (AM), São Luís (MA), Campos Grande (MS) e Salvador (BA), totalizando 17 bancos de sangue de cordão umbilical. Neste ano, explica, será concluído o banco de sangue de cordão umbilical de Belo Horizonte, que faz parte da fase anterior de expansão da rede, na qual o BNDES investiu R$ 32 milhões.
Outro projeto de grande sucesso gerenciado pela Fundação é o Redome – Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea. Trata-se do registro de voluntários à doação que se cadastram e aguardam o chamado, caso seja identificada a compatibilidade com paciente que necessite de transplante de medula. O registro tem gestão técnica do Centro de Transplantes de Medula Óssea do Inca (Cemo) e gerência administrativa e financeira da Fundação e, com mais de 3 milhões de pessoas cadastradas, é o terceiro maior registro de doadores de medula do mundo, atrás dos Estados Unidos e da Alemanha.
Entre outros resultados positivos da parceria, está o apoio da FAF ao Serviço de Oncologia Pediátrica do Inca. O câncer é a principal causa de morte no país por doença na faixa etária de 5 a 18 anos, mas aproximadamente 80% das crianças podem ser curadas, revela, se tratadas em centros especializados e diagnosticadas precocemente.
Foi a Fundação também, inclusive, que apoiou a construção do consultório oftalmológico; a criação e manutenção da emergência pediátrica; ampliação da UTI infantil, com tecnologia de ponta; e pesquisas oncológicas pediátricas. Em 2013, foram feitas cerca de 15 mil consultas, 1.085 internações e 328 novas matrículas, como a do Miguel.
Muito importante também é o apoio da FAF ao Centro de Suporte Terapêutico Oncológico, denominado HC IV, criado em 1998. Trata-se de uma unidade de tratamento paliativo que atende cerca de 1,1 mil casos por ano. O conceito de cuidado paliativo, explica, é o atendimento ao paciente sem possibilidade de cura visando à qualidade de vida. O objetivo nessa fase é tirar os sintomas da dor e cuidar dos efeitos colaterais.
Pela mudança do modelo de gestão do Inca
Marcos Moraes destaca a “necessidade absoluta de um projeto de lei que crie uma empresa pública com o nome de Instituto Nacional do Câncer, para dar maior agilidade e flexibilidade administrativa ao Inca”. Valle concorda, e lembra da morosidade do processo, que se arrasta há sete anos. Wiermann, por sua vez, também aponta a necessidade de definição de um modelo de financiamento e gestão e ainda a importância de se encontrar uma saída para manter os funcionários que são ligados à FAF.
“A SBOC torce para que isso se resolva da melhor maneira possível, da menos árdua, para que não se perca essa continuidade do processo da ciência. Qualquer perda de funcionário hoje, principalmente o de carreira científica, é muito difícil de reposição. Leva-se muito tempo, muito investimento, para conseguir alguém com as mesmas características”, comentou Wiermann.
De acordo com a assessoria de imprensa do Inca, no entanto, já não há mais caminho para que eles continuem. O concurso, já aprovado mas ainda sem edital publicado, deve sair neste ano para preencher as vagas que serão desocupadas pelos profissionais vinculados à FAF até março de 2015.
Mais importante que o rigor da legislação, deveria ser o que está em jogo na atuação do Instituto. O TCU, questionado se o fato do Inca lidar com a saúde das pessoas, muitos pacientes terminais, não deveria ser levado em consideração de alguma maneira, quando outras situações menos importantes, como das empreiteiras, acabam sendo reconsideradas pela justiça, respondeu por meio da assessoria de imprensa que a situação irregular de terceirizados na Administração Pública Federal ocorre em vários órgãos, não apenas no Inca, e que o TCU vem acompanhando o assunto há vários anos.
“Especificamente sobre hospitais do RJ, o TCU fez várias fiscalizações, inclusive no Inca, e constatou irregularidades na contratação de fundações de apoio para fornecimento de mão-de-obra a hospitais”, diz.
Por meio do Acórdão 1193/2006-P, o TCU determinou ao Ministério da Saúde que promovesse, no prazo de 365 dias, a substituição definitiva do pessoal contratado de forma indireta pelos hospitais federais, localizados no Município do Rio de Janeiro, por servidores concursados, na forma do art. 37, inciso II, da Constituição Federal. No mesmo acórdão, o TCU determinou ao HGB, ao HSE, ao INCA, ao INCL e ao INTO que regularizassem, por meio de contratos específicos, no prazo de 180 dias, a prestação de serviços em execução por fundações de apoio.
Pelo Acórdão 1520/2006-TCU-Plenário, informa, o TCU analisou proposta apresentada pelo Ministério do Planejamento para substituição de terceirizados da Administração Pública Federal. Nessa ocasião, o TCU decidiu “tomar ciência da proposta oferecida pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão para diminuir gradualmente, entre os anos de 2006 e 2010, a terceirização irregular de postos de trabalho na Administração Pública Federal Direta, autárquica e fundacional, mediante a substituição dos terceirizados por servidores concursados”
Sobre o caso específico do Inca, diz o TCU, no dia 10 de outubro de 2012, foi julgada uma representação proposta pelo Ministério Público junto ao TCU, que alertou para o risco de descontinuidade dos serviços prestados pelo Inca caso os terceirizados fossem substituídos e o contrato com a fundação de apoio não fosse renovado (ou seja, caso as decisões do TCU fosse integralmente cumpridas, haveria risco de descontinuidade).
Diante da situação, pelo Acórdão 2379/2012-P, alega, o TCU determinou ao Inca e ao Ministério da Saúde que definissem, em conjunto, as providências que seriam tomadas para evitar que o cumprimento dos Acórdãos prejudiquem os serviços prestados pelo Inca, tendo em vista a necessidade de dotar o instituto de servidores em quantidade e qualificações compatíveis com suas atribuições. “Portanto, a relevância da atuação do Inca ao lidar com a vida humana está sendo considerada pelo Tribunal”, conclui.