O Globo
Num país que vive mais tempo, multiplicam-se os casos que envolvem a exploração de quem já passou dos 60 anos, um grupo de cerca de 23 milhões de brasileiros. Casamentos por interesse, empréstimos bancários nebulosos e disputas antecipadas por heranças são histórias cada vez mais recorrentes nos processos que tramitam pelas varas de família. O dinheiro, como regra, é o fiel da balança em disputas que quase sempre começam em casa.
A disputa por bens e controle
Justiça é provocada cada vez mais a decidir sobre destino de idosos
O destino de idosos cada vez mais tem sido decidido pela Justiça brasileira. Eles acabam envolvidos em disputa por dinheiro, que se dão por meio de processos de interdição. Disputas e segredos de avós, pais e filhos deixam a sala de estar e passam a ocupar a rotina das Varas de Família. O aumento das interdições de idosos na Justiça e as consequentes disputas de filhos, netos, sobrinhos e companheiros pelo patrimônio e pelo controle desses patriarcas se traduzem numa das faces mais obscuras do envelhecimento.
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O fenômeno está oculto na ausência de dados oficiais, na rotina silenciosa das Varas de Família e sob o manto do segredo de Justiça dos processos. Durante um mês, O GLOBO investigou, reuniu histórias e comprovou que aumentaram os pedidos de interdição e as decisões pela retirada dos plenos poderes de idosos tidos como incapazes de discernimento. O GLOBO pediu os dados aos Tribunais de Justiça (TJs) das 27 unidades da federação. Dezesseis responderam, com dados que apontam um aumento do número de decisões gerais pelos juízes de Família nos últimos cinco anos, o que inclui os casos de pessoas com deficiência e dependentes de drogas. Apenas os tribunais de quatro estados conseguiram separar estatisticamente os casos de idosos, uma informação desconhecida até pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A grande maioria dos juízes, promotores, defensores públicos e advogados da área de Direito da Família ouvidos pelo GLOBO aponta um aumento da procura pela medida jurídica e relata a frequência de casos de disputa pela curatela e pelo patrimônio, apesar da necessidade de o curador prestar contas à Justiça e das limitações legais para a movimentação dos bens do interditado, o que só pode ser feito mediante autorização judicial. Também é comum que filhos recorram à medida para impedir novas relações afetivas dos pais.
A interdição é, na verdade, uma medida de proteção, já prevista no Código Civil brasileiro de 1916. No texto de quase um século atrás, o código previa a medida para “loucos de todo o gênero”, “surdos-mudos sem educação” e “pródigos”. O novo código, a partir de 2002, estabeleceu que devem ser interditadas pessoas sem o “necessário discernimento para os atos da vida civil”, em razão de uma doença ou uma deficiência mental. Se a interdição é total, o idoso deixa de votar, de movimentar uma conta bancária, de assinar um documento. E ganha um curador, que fica responsável pelos cuidados e pelo patrimônio.
Servidores públicos da elite do funcionalismo são vítimas em potencial dessa disputa. No Senado, a cada 52 dias, um aposentado é interditado pela Justiça. Quatorze anos atrás, o comum era uma interdição por ano. A Associação Brasileira de Alzheimer, uma entidade ainda pouco conhecida, recebeu 48 ligações em 2013 com pedidos de informação sobre interdição. No ano anterior, foram 32.
O dinheiro é fiel da balança num processo de interdição. Se existem renda e patrimônio em jogo, as chances de filhos disputarem a curatela se multiplicam. Se não, o processo transcorre sem muitos sobressaltos nas Varas de Família. Em muitos casos, o problema reside nas situações de abandono, na ausência completa de interessados em assumir a responsabilidade por um idoso sem saúde física e mental. E isso se reflete principalmente nas instituições filantrópicas, como o Maria Madalena.
Como funciona a interdição
Pessoas que não têm o necessário discernimento para os atos da vida civil, por doença ou deficiência mental, podem ser interditadas, assim como “ébrios habituais”, viciados em drogas e pródigos, conforme o Código Civil.
Pais, tutores, cônjuges, filhos ou quaisquer parentes, além do Ministério Público, podem fazer o pedido na Justiça.
O curador é definido pelo juiz. A partir da sentença de interdição provisória ou definitiva, os bens, os rendimentos e a pessoa do interditado ficam sob os cuidados do curador.
A interdição pode ser parcial ou total, conforme a escolha do juiz. No primeiro caso, o interditado pode desempenhar algumas funções, como votar, e delegar atribuições como a administração do patrimônio.
Qualquer alteração no patrimônio e na renda do interditado deve ser comunicada ao juiz, como recebimento de heranças, venda de imóveis e empréstimos bancários.
O curador pode receber uma remuneração para desempenhar a função, conforme definição do juiz.
É função do curador prestar contas num prazo definido pelo juiz, normalmente de dois em dois anos. Cabe a ele fazer a declaração do Imposto de Renda do interditado.
Condutas que causem prejuízo ao patrimônio ou dano físico e moral ao interditado podem levar à substituição ou remoção do curador.
Fontes: Código Civil e Cartilha de Orientação aos Curadores do Ministério Público do DF
Os ‘Pródigos’
BRASÍLIA. O Código Civil prevê que pessoas pródigas – gastadoras em excesso – podem ter a interdição decretada pela Justiça, a partir de um pedido de um familiar. Não são raras demandas nesse sentido nas Varas de Família relacionadas a idosos, com um componente a mais: o uso do argumento da prodigalidade para impedir novas relações afetivas dos pais ou avós.
Em agosto do ano passado, a 1ª Vara de Família de Cuiabá negou o pedido de um filho para interditar o pai de 81 anos amparado no argumento de que o idoso é pródigo. A juíza responsável pelo caso, Angela Gimenez, detectou um conflito na família, em razão de um caso extraconjugal do pai por mais de 20 anos. O idoso, inclusive, tem uma filha fora do casamento e custeia despesas da jovem. O filho argumentou que o pai estava se endividando e deixando de pagar o próprio plano de saúde. Não convenceu a juíza.
“O pai demonstrou que, não apenas sobre seu dinheiro pretende deliberar, mas também sobre sua família e seus amores”, escreveu a magistrada na sentença. “A questão da prodigalidade deve ser vista com cuidado redobrado, já que não se pode retirar do indivíduo o direito de gerir sua fortuna, conforme seus desejos.”
A mesma juíza negou, também em agosto, pedido de interdição formulado por uma mulher que queria evitar o divórcio. Se fosse nomeada curadora, garantiria o controle do patrimônio do marido, presidente de uma importante associação em Mato Grosso. “Ela fez um mau uso do instituto assistencial protetivo do incapaz”, argumentou a magistrada.
O idoso de 76 anos tem problemas de saúde, em especial a doença de Parkinson, mas mantém “plena higidez mental”. “Havia apenas um momento conturbado de rompimento conjugal. A interdição tem, indubitavelmente, natureza protetiva, não se configurando em meio idôneo para impedir que a pessoa delibere sobre sua vida e expresse seus desejos”, concluiu a juíza.
Nede, 89 anos
Sem comida, sem remédios, sem higiene e com benefícios de R$ 25 mil
Os servidores da Coordenadoria de Inativos e Pensionistas da Câmara dos Deputados passaram a atender ligações frequentes de moradores e funcionários de um prédio na Asa Sul, região nobre em Brasília, durante mais de dois anos. Do outro lado da linha, porteiros, zeladores e vizinhos denunciavam o abandono de uma pensionista de um servidor da Câmara.
Nede, como é conhecida a idosa de 89 anos, passava fome, não tinha acesso a medicamentos e não conseguia saciar as necessidades mais básicas. A falta de comida e de cuidados teve início com a chegada de um sobrinho, supostamente interessado nas pensões recebidas por Nede e pelo filho com deficiência mental. Os benefícios somam R$ 25 mil brutos.
O sobrinho conseguiu afastar da idosa e do filho uma jovem que havia convivido com a família na adolescência. Raquel Viana da Silva, hoje com 37 anos, era a responsável pelos cuidados de Nede desde que a idosa sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), em 2003. Raquel tinha uma procuração assinada por Nede dentro do hospital. Não demorou para o sobrinho aparecer. A procuração acabou transferida para ele.
— Foi tudo muito complicado, uma pressão grande. Ninguém ligava, ninguém aparecia. E, de repente, apareceu. Foi a primeira vez que alguém surgiu face a face — conta Raquel.
O sobrinho ficou mais de dois anos à frente dos cuidados de Nede e do filho. Durante esse período, a Coordenadoria de Inativos e Pensionistas da Câmara passou a receber as denúncias de maus-tratos. Na Justiça, ele conseguiu a interdição da idosa e do filho e foi nomeado curador dos dois. Em 2010, a curatela foi transferida em definitivo para Raquel.
Ela vive no apartamento com os dois curatelados e com uma filha adolescente. Recebe uma remuneração para cuidar dos dois e precisa prestar contas anualmente à Justiça.
— Eu costumo dizer que tenho três filhos, dois independentes financeiros e uma dependente. Ser curadora é ser mãe. Abre-se mão da liberdade, e existe muito julgamento da sociedade — diz.
A pensionista da Câmara tem limitações físicas, anda numa cadeira de rodas e faz fisioterapia três vezes por semana. Lúcida, está sempre dando atenção ao filho.
— Isso é que é importante: a lucidez — diz Nede.
Clarice, 89 anos
A neta está impedida de se aproximar da avó, mas insiste na interdição
Clarice tenta provar à Justiça que está sã. Com um raciocínio limpo, nostalgia e ressentimento, ela repisa o que viveu nos últimos anos e sabe o que deseja para hoje. A uma juíza, um promotor, uma psiquiatra e um psicólogo, Clarice relembra ter sido vítima de cárcere privado, ter comido restos de refeições, ter habitado um quarto escuro e com as janelas trancadas. O trauma não anula o discernimento. No aniversário de 90 anos, em março, certamente já terá em mãos o veredicto da Justiça sobre sua capacidade – ou não – de cuidar da própria vida.
– Hoje, eu me sinto com 40 anos de idade – diz.
Na cobertura de um prédio numa área nobre de Goiânia, sob vigilância armada e eletrônica (duas câmeras monitoram a porta principal do apartamento), Clarice passa os dias rezando o terço e lendo livros sobre fazendas históricas, na companhia de uma filha e de um neto. Uma outra neta acionou a Justiça para que ocorra a interdição da matriarca. O processo, aberto para avaliar se Clarice tem saúde mental para tomar as próprias decisões, intriga juízes, promotores e advogados. Se o processo de interdição avançar e a guarda for concedida à neta, ela será responsável por um patrimônio de R$ 15 milhões da avó viúva, valor estimado de uma herança constituída basicamente de extensos pedaços de terra em Goiás.
A mulher que quer interditar a avó e se transformar em sua curadora está há mais de dois anos impedida de se aproximar da idosa, por força de uma medida judicial. Foi na casa dessa neta que Clarice diz ter sido vítima de cárcere privado e de maus-tratos, versão mantida pela filha. Todas as relações estão cortadas, ao ponto de o apartamento ganhar tanta vigilância. A Justiça avaliou provas, concluiu pela existência de “violência psicológica” e já decidiu em caráter de urgência que a neta deve se manter a uma distância mínima de 300 metros, sob pena de ser presa preventivamente.
A filha de Clarice é taxativa: o interesse da neta é apenas no dinheiro e no testamento. A juíza responsável pelo caso já mandou averiguar se este é o real interesse. E se há traços de psicopatia na personalidade da autora do processo.
Com todos os laudos concluídos, a 1ª Vara de Família de Goiânia está bem próxima de uma decisão sobre o pedido de interdição. A principal conclusão médica: Clarice não possui doença mental, mas uma “perturbação” da saúde mental, em razão da idade avançada. “Assim, encontra-se parcialmente incapacitada para gerir seus bens, porém ainda capaz de gerir a si mesma”, diz o laudo psiquiátrico encomendado pela Justiça, concluído em 28 de novembro do ano passado.
– Na casa da minha neta, era uma escuridão. Ela não deixava eu fazer nada. Nunca vi maldade daquele tamanho. Eu não merecia, não fiz nada errado. Vou viver o restinho da minha vida sem precisar dela – resigna-se a mulher que, quando vivia nas fazendas com o marido, costurava vestidos de noiva por encomenda.
No aniversário de 90 anos, Clarice planeja estar com a filha e o neto em Buenos Aires. Uma situação bem diferente de cinco anos atrás, quando vivia com a neta e dormia num quarto nos fundos de um sobrado. Quando o marido adoeceu, ela aceitou viver na casa da neta – uma oportunidade de conviver com as bisnetas, pensou. No dia da morte do companheiro de décadas, foi impedida de acompanhar o velório, como conta.
– Foi realmente um cárcere privado. Assinava tudo que ela colocava na minha frente. Para que eu não falasse com minha filha, ela colocava a bateria do meu celular ao contrário. Meu marido deixou R$ 150 mil em conta, e minha neta sacou tudo.
O relato da avó é corroborado pela mãe, que demonstra completa frieza em relação à filha. Partiu da mãe a iniciativa da segurança armada e da medida protetiva obtida na Justiça.
A avaliação psicológica concluiu que Clarice tem “as faculdades mentais intactas e saudáveis para decidir por si só”, apenas com danos em algumas funções cognitivas em razão da idade. Já o laudo psiquiátrico reproduz a informação de que ela perdeu dez quilos no período em que viveu com a neta. Clarice tem um “transtorno cognitivo leve” e não pode ser considerada como portadora de demência, segundo o laudo. “Ela é capaz de decidir onde e com quem deseja conviver e quem deverá ser seu cuidador e curador”.
A neta se limita a dizer que o processo de interdição corre em segredo de Justiça, que não há provas de maus-tratos no processo, que a mãe e o irmão “têm problemas na cabeça” e que a investigação de cárcere privado foi arquivada.
– É doloroso o fato de eu estar afastada da minha avó. Ela está afastada de nós. Fora isso, não existe mais nada.
A juíza do caso chegou a conceder a curatela provisória à neta em caráter liminar. Convencida do equívoco, uma vez que os mesmos documentos apresentados para provar limitações já haviam sido rechaçados por outro magistrado, revogou a decisão. A neta omitiu, por exemplo, a existência da medida protetiva que a impede de se aproximar da avó. Agora, a juíza aguarda o posicionamento do Ministério Público para decidir, em definitivo, o destino de Clarice.
Helena, 93 anos
A história da taquígrafa do Senado que precisou ser retirada à força da casa de outra servidora
BRASÍLIA. As cartas não previram o futuro de Helena. Quando procurava as cartomantes, a taquígrafa do Senado queria que o tarô desenhasse suas perspectivas amorosas. Nem a previsão mais negativa chegaria perto da realidade que Helena vive hoje, aos 93 anos de idade. Sozinha, sem nenhum parente e sem amigos, a taquígrafa aposentada está num abrigo em local incerto, endividada – mesmo recebendo remuneração bruta de R$ 29,4 mil, o teto do funcionalismo público, que é o salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) – e sob a responsabilidade de uma policial civil do Distrito Federal.
Depois de dois empréstimos suspeitos no Banco do Brasil no valor de quase R$ 700 mil e de uma denúncia de maus-tratos, que estão sob investigação, Helena foi retirada sob aparato policial da casa onde vivia, em cumprimento a uma decisão judicial. A proprietária do imóvel, e ex-curadora provisória da idosa, é uma servidora da ativa do Senado: Nina Lúcia de Lemos Torres, também taquígrafa e também remunerada com um salário que bate no teto constitucional. Helena e Nina não se veem desde então. A guarda definitiva foi assumida pela policial civil por indicação do Ministério Público do DF. A antiga e a atual curadora estão em pé de guerra.
Por conta de uma demência, que gera uma incapacidade “definitiva e irreversível”, conforme os últimos laudos médicos, Helena foi interditada pela Justiça. Primeiro, em junho de 2011, houve uma interdição provisória, conforme relato de Nina, a primeira curadora. Depois, a curatela mudou de mãos a pedido do Ministério Público e por decisão da Justiça: foi transferida em definitivo para a policial civil em junho de 2012.
A estranha movimentação bancária ocorreu em junho de 2011. O primeiro empréstimo, em conta corrente, foi feito no dia 22, com 60 parcelas de R$ 2,3 mil, que totalizam R$ 141,5 mil. O segundo foi um empréstimo consignado em folha, três dias depois, com 96 prestações de R$ 5,8 mil, num total de R$ 557,2 mil. Dessa forma, Helena só terminaria de pagar as parcelas em 2019, quando estaria com 98 anos de idade. A aposentada não tem capacidade para administrar bens e fazer transações financeiras, em razão da demência, como concluiu um laudo médico. Ela toma medicamentos para doença de Alzheimer, segundo a ex-curadora.
Nina nega qualquer responsabilidade pelos empréstimos. Diz que apenas apresentou o gerente da agência do Banco do Brasil a Helena. Ela atribui toda a operação – o que pode incluir uma fraude – aos servidores do banco. Tanto a antiga curadora quanto a atual sustentam que a assinatura nos contratos dos empréstimos não coincide com a grafia de Helena.
Por iniciativa da atual curadora, uma ação de anulação dos empréstimos e revisão dos contratos passou a tramitar na 13ª Vara Cível de Brasília, com base no Estatuto do Idoso. Os advogados que defendem Helena apontam no processo a existência de um saldo negativo de R$ 140 mil no cheque especial, a contratação de títulos de capitalização e a prática de “venda casada” com os empréstimos. Eles pedem, então, que o Banco do Brasil informe quem foi o gerente responsável pelas operações e qual foi o destino do dinheiro, com a especificação de contas corrente e poupança destinatárias dos recursos.
A defesa do banco sustenta no processo que Helena compareceu pessoalmente à agência e assinou os contratos. “Não há como o banco saber se a pessoa portadora de tais documentos é o verdadeiro titular. O banco não é perito em grafotecnia.” Ao GLOBO, o Banco do Brasil disse que vai se pronunciar no curso do processo e que “mais informações sobre o caso estão protegidas sob sigilo bancário”.
A curadora de Helena também decidiu acionar a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher em Brasília para denunciar Nina por maus-tratos. Mas, até agora, as provas reunidas pelos policiais não comprovam as agressões. As investigações ainda estão em andamento.
– Helena nunca sofreu maus-tratos. Ela se machucou uma vez, mas foi numa queda – diz Nina.
A situação envolvendo a taquígrafa aposentada levou o Senado a acionar oficialmente o Ministério Público do DF, mais especificamente a Promotoria do Idoso. A primeira vez em que o Senado enviou um ofício à Promotoria foi em julho de 2010. O caso acabou nas mãos de promotores da área de Família, por haver necessidade de interdição.
No ano passado, a Polícia Legislativa do Senado foi informada pela Polícia Civil sobre a existência de um inquérito contra Nina, o que levou a um “registro da ocorrência”. O Senado não detalha o que é esse registro. Nina está de licença do cargo.
Quando a curatela foi transferida para a policial civil, a servidora estava cedida ao Ministério Público e coordenava o Setor de Proteção a Interditados do órgão.
A policial já conhecia Helena de feiras esotéricas – as duas tinham uma amiga cartomante em comum.
Um hábito da taquígrafa, desde então, era dar dinheiro a desconhecidos, o que corroborou o diagnóstico de demência e a consequente interdição. Ela também transferia bens valiosos a conhecidos. Nina conta que um único homem ganhou uma casa, um veleiro e grandes quantias de dinheiro. O Ministério Público tenta reverter na Justiça vários bens transferidos por Helena.
O bem mais cobiçado é um apartamento na Asa Sul, área nobre de Brasília. Quando já estava interditada, Helena manifestou a intenção de transferir o imóvel para Nina, o que foi negado pela Justiça. Como não tem nenhum parente vivo – seu único irmão não teve filhos – nem discernimento ou direito constituído para decidir, o apartamento ficará para o Estado.
Em papéis e cadernetas, Helena costumava registrar as doações feitas, frases deconexas e orações, misturando as letras do alfabeto tradicional com os códigos da taquigrafia, função que ela começou a desempenhar no Senado em 1968. A taquígrafa tem mania de perseguição: “O filho ficou me vigiando. Corro perigo de agressão?”
Numa das anotações, guardadas por Nina, há o registro de um suposto encontro entre Helena e sua atual curadora, em julho de 2006. Conforme as anotações que seriam da taquígrafa aposentada, as duas jogaram cartas naquela ocasião.
“Ela é cartomante”, teria escrito Helena. Nina insinua que foi retirada da curatela e afastada da aposentada porque a atual curadora tem interesses diretos no processo. A atual curadora diz que, em razão do segredo de Justiça dos autos, não fará qualquer comentário sobre o caso.
No abrigo onde foi colocada, em local não revelado por ninguém, Helena costuma receber as pessoas com uma figa, um amuleto feito com a mão fechada:
– É para espantar “urubu” e “amigo da onça” – repete.
Balbina e Claudianor
Sem patrimônio e renda, histórias de abandono
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Balbina, de 85 anos, é uma das idosas interditadas pela Justiça que vivem no bloco C do Lar Maria Madalena, em Brasília. É neste bloco onde estão os idosos que recebem menos visitas e que precisam de cuidados contínuos – são 12 os interditados. Balbina tem uma demência e fala frases desconexas. Passa os dias com uma boneca no colo:
– O único parente que eu tenho é ela. Tem duas irmãs que não gostam de mim. Mandei elas se danarem.
O relatório de serviço social do abrigo conta um pouco mais sobre ela: a mulher era cozinheira, mudou-se de Campina Grande (PB) para Brasília, viveu na rua e foi levada para o abrigo há oito anos. Teve seis filhos. Os seis morreram. A aposentadoria de um salário mínimo é usada pelo curador nas despesas básicas do asilo.
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Claudianor, 75, não tem ninguém na vida – é outro sob a responsabilidade legal do presidente do Maria Madalena. Também é um homem sem amigos. Os cuidadores contam que Claudianor não gosta de conversar com os outros idosos, é agressivo em alguns momentos. Passa os dias sentado, calado, sem fazer nada.
– Só saí daqui duas vezes, uma para ir ao banco e outra para ir ao hospital. É do quarto para o pátio e do pátio para o quarto – conta.
Ele diz estar há sete meses no Maria Madalena. Já são cinco anos, na verdade, segundo o relatório de serviço social, que informa também que Claudianor morava na rua, catava latinhas no Setor de Embaixadas e teve todos os documentos extraviados. Depois de um acidente com uma barra de ferro, que caiu em sua cabeça, Claudianor se aposentou e passou a receber um salário mínimo.
Golpe do baú de R$ 30 milhões
TCU investiga falsos casamentos com servidores idosos para assegurar recebimento de benefícios
O pente-fino que o Tribunal de Contas da União (TCU) é obrigado a fazer nas pensões pagas pelos órgãos públicos federais tem detectado, cada vez mais, casamentos e uniões estáveis entre parceiros com uma grande diferença de idade. O fenômeno alimenta a suspeita de relações forjadas por servidores no fim da vida, para assegurar pagamento de pensões vitalícias aos respectivos cônjuges.
Companheiros também são suspeitos de simular a relação, com ou sem anuência do servidor, para ter as pensões. Levantamento inédito da Secretaria de Fiscalização de Pessoal (Sefip) do TCU dá uma dimensão do prejuízo aos cofres públicos em razão de pagamentos irregulares do benefício.
A Sefip listou 25 casos de pensões em que o casamento ou a união estável envolviam parceiros com diferença de idade de 36 a 60 anos. Em todas as situações, o plenário do tribunal identificou irregularidades na concessão do benefício e determinou sua interrupção. Até isso ocorrer, pensões foram pagas por décadas a fio, pois os beneficiários eram jovens, e os pagamentos são vitalícios para cônjuges, conforme previsto na lei dos servidores públicos federais. O total pago pela União, somente nos casos dessas 25 pensões, chegou a R$ 30,4 milhões.
A diferença de idade não foi determinante para a constatação da irregularidade no pagamento, uma vez que não há previsão legal para esse aspecto envolvendo servidores e pensionistas, ressalta o próprio TCU. Também não está por trás da decretação da ilegalidade uma eventual simulação de casamento ou união estável.
Em apenas um caso, a pensão foi considerada irregular por falta de comprovação da união estável. A diferença de idade entre uma servidora do Ministério da Saúde em Minas e o pensionista era de 49 anos. Em 38 anos de pagamentos ilegais, desde a morte da servidora, o beneficiário recebeu R$ 866,6 mil dos cofres públicos. O TCU decretou a ilegalidade em junho de 2011 e decidiu que os valores recebidos indevidamente não devem ser devolvidos.
As irregularidades mais comuns, determinantes para a suspensão dos pagamentos, são erros na proporcionalidade do benefício e repasses a mais aos pensionistas. O tribunal tem dificuldades para comprovar casamentos e uniões estáveis forjados. Mas, diante da recorrência dos casos, o órgão pretende fazer auditoria para listar o maior número possível de situações assim e calcular o prejuízo.
—Diferença muito grande de idade, por si só, não é motivo de ilegalidade. E, para anular um casamento, só o Judiciário. A partir daí é que o TCU pode atuar. Nos casos de união estável, é mais fácil reunir provas. Já detectamos diversas simulações — afirma o secretário de Fiscalização de Pessoal do TCU, Alessandro Laranja.
A Sefip analisa, por ano, 15 mil pensões e 35 mil aposentadorias. Do total, cerca de 4 mil (8%) são consideradas irregulares. O TCU tem de analisar a legalidade do pagamento de uma nova pensão em 120 dias. Mas, pela fila de processos, a análise costuma demorar oito meses. Os órgãos públicos podem iniciar os pagamentos antes do veredicto do TCU. Decisões do Supremo legitimam esses pagamentos precários.
O retrato dos beneficiários
Cônjuges, companheiros em união estável, pais, mães, idosos e pessoas com deficiência dependentes do servidor falecido têm direito a uma pensão vitalícia. Já pensões temporárias se destinam a filhos até fazerem 21 anos. O número de beneficiários se mantém praticamente constante nos últimos dez anos. Mais de 408 mil servidores deram origem a pensões, segundo dados de 2013 do Ministério de Planejamento, um gasto anual de R$ 31,7 bilhões.
Numa decisão de julho de 2013, o TCU considerou legal o casamento de um general do Exército de 97 anos com uma mulher quase 40 anos mais jovem. Ele já estava com a saúde “bastante debilitada” e morreu dois anos depois. “Não há documentos que evidenciem que o interessado era incapaz para os atos da vida civil, de forma que o casamento é legítimo. Não há que se reformar o ato de concessão de pensão”, concluiu.
Já a adoção de uma neta de 24 anos, quando o general tinha 91, foi considerada ilegal. Os filhos do militar já eram maiores e não teriam direito ao benefício. O único objetivo da adoção foi perpetuar a pensão à neta, disse o TCU, que determinou suspender o benefício. A ex-companheira e a neta travam na Justiça um duelo pela pensão integral.